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em mais uma manhã cinzenta, samuel acordou e chorou.

faziam três meses naquele dia. noventa dias acordando cansado, doze semanas chorando todas as noites, duas mil cento e sessenta horas indo dormir sozinho, cento e vinte e nove mil e seiscentos minutos pegando o ônibus, almoçando e voltando para casa sem ninguém ao seu lado, quase oito milhões de segundos sem minghao.

e samuel sentia falta. sentia falta da música clássica tocando baixo de dentro do quarto do mais velho, do mullet bonito que o chinês experimentara e que acabou gostando, das artes marciais que ele praticava à tarde - e que sempre terminava com samuel tendo de cuidar de algum ferimento leve.

samuel chorou naquela manhã enquanto lembrava do corpo esguio do xu, dos braços longos que lhe abraçavam sempre que se sentia triste ou amedrontado, das suas roupas estilosas e de seus sapatos caros.

chorou enquanto tomava banho e se vestia com suas roupas mais belas, nenhuma em tom escuro por conta do calor. sabia que minghao não aprovaria se ele se vestisse de preto, pelo menos não quando iria visitá-lo.

parecia que mal faziam três dias desde que minghao aparecera em seu apartamento, cheirando à terra molhada e chiclete de canela. e samuel sempre gostou de cheiros rústicos, se apaixonando pelo rapaz à sua frente de primeira. minghao queria dividir aluguel consigo.

o kim nunca ficou tão feliz por ter anunciado seu apartamento como disponível para divisão de aluguel no site da faculdade, porque aquilo o levou a conhecer minghao.

samuel terminou sua segunda caneca de café - ou era a terceira? - e se levantou da cadeira de madeira desconfortável, lembrando de como o xu foi teimoso no dia que escolheu aquele jogo de cadeiras simplesmente por serem bonitas, mas não confortáveis. lembrava da expressão dele como se tivesse sido no dia anterior.

estava fazendo tudo no automático, nem percebendo quando se perdia em memórias, algumas felizes, outras nem tanto assim.

retirou as chaves do apartamento de dentro do cesto florido em frente à porta de entrada e se dirigiu, como de costume, ao elevador. mal percebeu, mas chorava.

seu peito doía ao pensar que nunca mais veria o chinês novamente, que nunca mais ouviria aquela risada gostosa que ecoava pelos cômodos da casa, que nunca mais experimentaria a sensação quente em seu estômago ao escutar seu mandarim arrastado sempre que estava bêbado e precisa dos cuidados do menino.

o ônibus chegou ao ponto bem na hora que samuel pisou fora do prédio, como se o universo não quisesse que os outros presenciassem sua dor tão publicamente assim. internamente, agradeceu por isso.








a floricultura parecia cada vez maior enquanto o ônibus avançava, e samuel nem ao menos pensou duas vezes antes de se levantar e simbolizar ao motorista de que desceria ali; o velho homem imediatamente freiou o automóvel. samuel e duas meninas conversando entre si desceram, mas o kim sentia que existia apenas ele naquela rua.

porque aquela floricultura, pintada de rosa pastel e com orquídeas enfeitando a entrada, era a preferida de minghao.

nos dias quentes o xu geralmente iria ali, escolheria algumas flores e voltaria para casa para lhe contar como o mundo parecia mais colorido enquanto segurava um buquê nas mãos e como seu nível de alegria crescia quando as flores estavam cheirosas. e elas sempre estavam. e minghao sempre estava feliz por causa disso.

o típico sininho presente em quase todas as lojas da rua badalou assim que samuel entrou na loja de flores, o cheiro natural das margaridas, violetas, tulipas e girassóis lhe desejando boas-vindas.

eram molhadas por lágrimas sempre que ele ia ali, mas não se importava se vissem-no chorando. não mais.

um atendente bochechudo o encarava por trás do balcão com um olhar de pena, kim sabia disso. sabia que sentiam pena de si, já que ele aparecia por ali todas as semanas desde que minghao lhe deixara, sem falta. e sempre acabava chorando.

o encarou por alguns segundos, esperando-o desviar o olhar, o que aconteceu. odiava quando as pessoas o olhavam. odiava todos que faziam isso, menos minghao.

mas minghao não estava mais ali ao seu lado, e nem voltaria a estar.

seus membros pareciam sacos de cimento enquanto ele se movia pela floricultura, tentando escolher entre os tantos tipos de flores diferentes.

devagar, sua mente começou a se dispersar mais uma vez, se esforçando para lembrar de qual planta minghao mais gostava. eram rosas ou margaridas? samuel nem ao menos conseguia diferenciar uma da outra, quanto mais lembrar de algo assim. se odiou por não relembrar.

mas lembrava de suas cores preferidas, então resolveu arriscar-se. não dá pra piorar o que já não está bom, afinal.

alguns minutos depois - talvez mais que apenas "alguns" -, samuel finalmente se controlou o suficiente para não chorar quando estivesse frente a frente com o atendente que o encarava antes. não queria receber o olhar de pena dele, não todas as vezes que fosse ali.

e minghao não iria querer que chorasse. lembrava claramente de como o chinês não gostava de lhe ver chorar, nem se as lágrimas fossem causadas pelo motivo mais bobo do mundo. lembrava dos abraços e chás que o acalmavam mais do que cantos de sua mãe.

agora que chorava, não tinha ninguém para o acolher em seus braços.

o atendente arranjou as flores escolhidas a dedo em um buquê enquanto samuel se perdia em lembranças, como se um filme passasse em sua cabeça, um filme que contava sua história com xu minghao.

voltou ao ponto de ônibus relembrando um dos momentos felizes com o outro: quando minghao passara em um dos testes mais difíceis da faculdade.

ele estava deitado no sofá com lin lin - gatinha dos dois - assistindo à televisão, quando a porta se abriu com um estrondo e minghao, todo encharcado pela chuva, entrou sorrindo de orelha a orelha. a gata miou alto e saiu correndo do colo do kim, deixando um arranhão em sua perna.

e antes de samuel abrir a boca para reclamar do barulho, minghao simplesmente o pegou no colo e saiu girando, gritando que havia tirado a nota máxima no teste que fizera no dia. naquele dia, ele se sentiu o garoto mais sortudo do mundo.

o ônibus chegou, e com as flores nas mãos, samuel sentou e esperou chegar em seu último destino.







conseguiu segurar as lágrimas que teimavam em querer sair poucas quadras antes do lugar esperado, já se sentindo um pouco doente por ter chorado tanto sem ter comido nada ao sair de casa além de café ralo.

por sorte, uma senhora ranzinza e corcunda se encontrava no ponto em que desceu do ônibus, vendendo pequenos bolos que samuel reconheceu como sendo os preferidos de minghao. se lembrava dela: era a única pessoa da capital que vendia os bolinhos chineses que ele tanto tinha saudade.

comprou dois. e com eles na mão direita e o buquê na mão esquerda, parecia que minghao lhe esperava, pronto para receber os presentes.

o bolo conseguiu reviver histórias esquecidas pelo coreano, de dias quando o xu comprava comidas exóticas e dividia com ele, chamando isso de "aventuras gastronômicas". desde comida tailandesa até docinhos ingleses, minghao sempre conseguia achar ou fazer algo diferente para experimentarem. sentia saudades disso.








farelos de um dos bolos jaziam na boca de samuel quando ele chegou na entrada do cemitério. o lugar continuava com sua grama verde e alguns passarinhos cantando em um lugar ou outro, exatamente como na última semana.

sabia seu caminho de cor. cinquenta passos para frente a partir da entrada e mais quinze para a esquerda. ali se encontrava o que ele via todos os sábados.

"xu minghao
1997-2019" 

samuel encarou as palavras por algum tempo. achava que nunca conseguiria se acostumar com aquela gravura tão simples, como se minghao pudesse ser reduzido à simples números em um pedaço de pedra. como se ele nunca tivesse amado, se machucado, sorrido ou se aventurado. como se ele nunca tivesse existido. como se ele fosse apenas um nome inventado por alguém.

minghao queria ser cremado e depositado na sua cidade natal, mas seus pais nem ao menos realizaram seu último desejo. era óbvio, no entanto, que isso não aconteceria, eles não se importavam nem se ele tinha dinheiro o suficiente para o mês, quanto mais como ele queria terminar sua vida. samuel os odiava tanto quanto minghao.

se abaixou com cautela perto da lápide, como se a terra coberta pela grama contivesse alho precioso demais para ser tratado com normalidade. e, tecnicamente, era. para samuel, o xu era algo mais do que precioso: era algo raro.

o bolinho que sobrou foi deixado ao lado da pedra; as flores, no entanto, continuariam em suas mãos por mais algum tempo, eram importantes demais para simplesmente serem largadas. suas pernas, cansadas como todo o resto de seu corpo, cederam e foram ao chão, fazendo samuel se sentar. aquilo levaria algum tempo.

- bom dia, hao. feliz três meses - ele começou e deu uma risada fraca, forçada. - bem... talvez nem tão felizes assim. eu te trouxe o bolo que você gosta, está vendo? aquela velhinha estava bem onde eu desci do ônibus... bela coincidência. às vezes eu acho que essas coisas acontecem porque você quis, mas então eu lembro que tais coisas não existem. as pessoas devem pensar que eu sou louco me vendo conversar com você, não é? não é como se me importasse... a faculdade anda um pouco complicada agora que eu não tenho você para me explicar os conteúdos que eu não entendo, mas eu estou conseguindo me virar. o apartamento parece vazio, no entanto, e isso é pior.

"hoje eu senti sua falta mais do que o comum. qualquer coisa me lembra de você: a floricultura, meu café ruim, as cadeiras da cozinha, o programa de TV que passa aos domingos, a lin lin choramingando sempre que eu chego em casa e ela vê que sou eu e não você, o último assento do ônibus que você sentava, seus livros na estante... eu queria que você estivesse aqui do meu lado, mas eu sei que não dá. só é difícil para me acostumar, sabe? do dia para a noite, eu comecei a apenas escutar a minha voz ao conversar com você.

eu te trouxe um buquê, também. não consegui lembrar das suas flores preferidas, mas lembrei das cores que você gostava, então espero que isso compense minha falha. me desculpe por esquecer, mas eu prometo que vou lembrar do resto, juro de dedinho.

eu vou lembrar de você todos os dias. vou lembrar do seu sorriso, das suas roupas, dos seus abraços, do seus olhos, do seu tom de voz e das suas lágrimas. vou lembrar do jeito que você carregava a lin lin no colo, do seu jeito suave de andar e falar com todos, de você molhado chegando em casa sempre que não tinha dinheiro para o ônibus em um dia chuvoso. vou lembrar da sua mão na minha cintura e da sua risada, da sua voz melodiosa ao cantar algo enquanto cozinhava, da sua cara ao tentar disfarçar que meu almoço estava ruim. vou lembrar de tudo, e se eu esquecer de algo, por favor me perdoe.

eu sinto sua falta, hao. mais do que tudo. me desculpe por não ter sido o suficiente e por não ter percebido o quanto você sofria por trás dos seus sorrisos. me desculpe por pensar apenas no que eu sentia enquanto você se escondia de mim.

e obrigado por ter me mostrado o significado de amar e o lado bom da vida, obrigado por ter me proporcionado a sua amizade quando eu não tinha em quem me segurar. eu te amo por tudo que você fez e tudo que você foi, e eu espero que você tenha me amado também.

desejo que um dia eu lembre de você e apenas sorria, minghao. e eu sei que esse dia irá chegar, então apenas me aguente enquanto eu espero por ele, tudo bem? só então eu vou poder vir aqui e não me acabar em lágrimas como agora. eu te amo e sinto sua falta, e a lin lin também, okay? um dia nós iremos te encontrar novamente."

samuel deixou as flores ao lado do túmulo e se levantou, limpando as pequenas lágrimas que haviam caído enquanto falava. ficaria bem, sabia disso. era só questão de tempo.

se afastou do lugar e foi mais uma vez para casa, dessa vez sem nada nas mãos, deixando apenas as flores vermelhas, rosas e amarelas cuidando de seu amado por mais uma semana.

flores vermelhas, rosas e amarelasWhere stories live. Discover now