Os dois estranharam-se logo de cara. Não eram as manias bizarras de cada um que mais incomodava, apenas o convívio extremo naquele lugar tão isolado servia para os afastarem cada vez mais, sendo que nunca uma palavra mais carinhosa fosse trocada ou um olhar estimulasse uma compreensão mútua. Tão tristes aqueles a serem abandonados pelo resto do mundo, obrigados a conviver com outro qualquer para não chegarem ao final estágio de loucura. E assim caminhavam, do lado oposto ao resto da humanidade.
Quando se encontraram pela primeira vez, a civilização parecia ter encontrado finalmente a desejada e cobiçada paz tanto na igualdade social quanto na espiritual. O encontro não foi um ato premeditado, foi mais um esbarrão violento e incômodo para ambos os lados. Um veio remando sem cessar, cruzando pela décima vez um continente para outro, seu pequeno bote pareia ser feito de constelações, o cabelo longo e prateado descia em belas espirais como as ondas a bater e quebrar-se no casco de sua navegação e pequenos peixes dourados iam guiando-lhe. De súbito, Eden parou e lançou os remos ao mar, encontrara o melhor local para um suicídio; as estrelas bailando no céu tão escuro e infinito, a água fria renovando sua coragem para o ato, na expectativa de encontrar um fim sem muitas tragédias e silencioso, mesmo tendo motivos tão desumanos. Eden simplesmente não encontrara razões para permanecer acordado. O fato é que, com a tal paz chegando de forma tão rápida e urgente, a harmonia infinita esperada de maneira óbvia para esses casos fora substituída por uma dolorosa crise existencial. Via seus companheiros enfim encontrando tudo o que desejavam e construindo um lar confortável, para Eden também fora entregue todos esses privilégios e a chance de continuar viajando, mas não via motivos, ninguém passava fome, todos tinham moradia e educação, o trabalho era bem remunerado, ou seja, ninguém mais precisava de sua ajuda e para que viajar se encontrava culturas semelhantes em todos os países? As pessoas eram felizes, era sua obrigação também estar, lutara a vida inteira por desconhecidos, deveria estar radiante. Porém, a certeza de um sentimento oposto o trouxera até ali.
Eden levantou, equilibrando-se no frágil barquinho e deixando o vento gelado da maresia coordenar seu leve balançar. Não dava para ter certeza de seu sexo, usava roupas largas e escuras confundindo-se na noite, suas feições eram levemente afeminadas e os olhos traziam um tom demasiado agressivo e melancólico, os lábios possuíam uma curvatura fina de um rosa pálido e as mãos grandes sempre em movimento. Naquele momento todas as repentinas mudanças passavam por sua mente. O sexo, a idade, a raça e a religião deixaram de ter importância. Cada um poderia ficar com qualquer um, não existia mais preconceito e discriminação e todas as línguas e crenças tornaram-se uma só, agradando a todos os gostos (como realizaram isso, era uma incógnita). No lado da educação as coisas assumiram um ar mais descontraído, estudasse quem tivesse vontade, os adolescentes viviam da música, lazer e da falta de regras; arranjar emprego também era simples, o número de pequenas empresas e de outras profissões aleatórias crescia; o espaço das cidades fora dividido para abrigar um grande número de pessoas em casas obedecendo o mesmo modelo e o governo seguia um regime verdadeiramente democrático. Toda aquela liberdade e comodidade o assustava.
Ele olhou a redor esperando a chegada da morte, uma palavra muito dura para os ouvidos mais humanos - que agora viviam além dos cem anos! - mas Eden aprendera a encarar de uma forma mais espontânea, seguindo o conceito do recomeço de uma nova existência. Foi assim que viu Oliver pela primeira vez.
Ela ou ele (nunca chegou a saber) vinha flutuando, criticando o céu e suas estrelas e utilizando apenas o par de braços para se locomover. Do barco notou sua magreza esquelética, os ossos escapulindo pelas pequenas ondas e a voz um pouco cansada, mas decidida. Em uma ilusão de ótica, desapareceu, e nesse ato o que sustentava o frágil mundo de Eden finalmente desabou.
Primeiro pequenas gotas de tinta azul e brilhante escorreram do céu, fazendo-o esquecer por instantes da figura flutuante. Ergueu a cabeça, a tinta manchando seu rosto, o barco e o mar. O azul celeste tão intenso começou a se tornar fraco e próximo da imperfeição, as estrelas também despencavam lentamente, mergulhando no oceano e enterrando os peixinhos. O céu fora engolido pelo mar, conseguia enxergar seu reflexo perdido acima de sua cabeça.
Seria a morte aquela sensação de incerteza e insegurança? O barco afundava, a água do oceano era engolida por um imenso ralo até sobrar uma areia amarelada e um teto plastificado, com dezenas de holofotes sobre si no lugar onde costumava estar as estrelas, e o pequeno corpo esquelético tentando se enterrar, sem sucesso. O deserto avançava até onde a vista alcançava, a luz provinha apenas daquele sistema artificia no teto e milhões de olhos observavam o desenrolar daquela cena cômica.
Eden saiu do barco, sujando a bota na areia. A criaturinha levantou-se de sobressalto, areia escorrendo por todos os poros e abrindo caminho pelo rosto para moldar-lhe a face. Oliver endireitou a coluna e observou, o semblante frio, a transformação tão rápida no cenário. Até alcançar a surpresa na boca entreaberta de Eden, suas roupas elegantes e o rosto saudável de quem ainda não passara pordificuldades.
- Nos encontraram – ela sussurrou, suas palavras tão cheias de ressentimento perdidas no redemoinho de angústias. Eden sentiu o estômago revirar perante aquele esboço mal-sucedido a sua frente. Oliver não tinha cabelo ou qualquer revestimento de pelo, além das sobrancelhas longas e bem marcadas, os olhos eram imensos e roubavam a cor de todos os sentimentos que orbitavam sua mirrada figura, as bochechas eram delicadas, assim como a pequena testa coberta de espinhas e pequenas feridas; já o corpo era o de um velho a beira da morte, veia saltadas e a pele manchada e flácida, contornando o esqueleto. O pálido Eden não conseguia responder, nunca tinha visto algo tão feio, sem coragem para encara-la de frente. Ela andou até chegar a uma distância segura, onde seu cheiro de puro rancor e de muitas mortes atrasadas não alcançava as narinas sensíveis de Eden. Sua boca estava seca, parecia ter esquecido o poder da fala, transtornado na presença irônica de Oliver, tendo a convicção de que ela ria de sua frustrada tentativa suicida. – Deveríamos achar a saída desse lugar, Eden – ela continuou, ele tentava ignorar o fato de seu nome já ser conhecido.
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Atrás da carapaça
Science FictionO mundo parece ter encontrado a cobiçada paz mundial, pelo menos é o que parece. Caminhando as margens, duas estranhas pessoas se esbarram inusitadamente, nenhum tendo coragem de declarar a verdadeira infelicidade.