Capítulo 1 sem título

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     Em primeiro lugar isso não é um diário, não gosto de escrever e não vou tornar disso um hábito. Outra coisa: isso não é bilhete suicida. Não tenho certeza do que é. Talvez eu só queira falar dessa decisão para alguém, não para um conhecido, uma dessas pessoas que acham que me conhecem, ou mesmo para essas pessoas que cobram pra te "ouvir", "decifrar os sinais do seu subconsciente" e propror "soluções". Não se pode confiar em psicólogos, dissto eu tenho certeza.
      Mas, então, por que eu estou aqui com meu caderno que não pego há quase três semanas escrevendo para ninguém em particular?
      Minha nossa, Leitor, como você vai direto ao ponto, hahahaahahaha.
Eu fui pra escola ontem. Não é nada demais, eu sei, os adolescentes fazem isso, é o que se espera deles. Tem até aqueles que vão aos sábados. Isso mesmo aos sábados!!!! Isso que é ter vontade de "vencer na vida," como diria minha mãe.
      Mas o que tem de especial em ir pra escola?
      Ótima pergunta Leitor. A resposta é simples: eu não estava indo mais. Antes eu acordava todo dia às 06:15, me arrumava e saia 06:45 para caminhar até o ponto e pegar o ônibus. Eu sempre sou o primeiro a chegar no ponto, ele geralmente passa umas 07:05, assim as outras pessoas se preparavam para chegar no mínimo 07:00 como qualquer outra pessoa faria.
Uma coisa importante: eu não parei com essa rotina de uma hora para outra. Sempre que caminhava até o ponto, ficava pensando em não ir ou só continuar andando, mas sempre me obrigava a parar quando chegava no ponto. Me obrigava a parar e esperar.
      Até que um dia eu só continuei.
      Há quase três semanas eu simplesmente não parei de andar. Minha mente disse "Só vai cara," e eu fui. Inaceditável no quanto foi fácil. Eu continuei andando sem nem saber pra onde ir!!!!. E mano mano manomanomanomanomano manooooooooooooooo. Foi uma sensação muito gostosa. Não essa babaquice brega de "Eu finalmente me senti livre." Foi só uma sensação que eu achei boa e decidi que iria sentir outra vez, sempre que quisesse.
      Agora imagine: sair andando por ai, sem compromisso. Apenas dando um passo após o outro. Sem parar pra pensar a onde estava indo mesmo, se não vai se atrasar, repassar na cabeça várias vezes o que estava indo fazer. E se fosse algo marcado com alguém? Não tem essa chatisse de ficar pensando se já chegaram ou que na verdade você é o intruso que se infiltrou no grupo e apenas te deixam lá, não por educação, mas por não terem coragem de falar que você não pertence aquele grupo, que vocẽ não é visto como amigo por ninguém.
Parace que eu estou perdendo o foco aqui no textinho. Estou escrevendo de caneta, não tenho liq-paper e não quero riscar nada, ai qualquer coisa que eu escrever, mesmo que seja nada-com-nada eu vou ter que deixar.
      Como eu estava dizendo: continuei andando. Fui pra orla, sentei num daqueles bancos de concreto e observei o mar, melhor, o que deveria ser o mar. Tinha uma cor que lembrava de um musco, um tom de verde escuro, mofado e velho. Aquele verde subia e descia.
      O mar não tinha um acordo com a areia, a água não dizia "hei, agora eu vou dez centímetros mais longe do que na última onda." O mar apenas ia, suas ondas se quebravam mais longe ou não. E o mar também não tinha acordo com o ar, as cristas das ondas subiam na altura que queriam, se impondo entre as moléculas de ar, arrastando-as. Hora uma crista era mais alta, hora outra crista era mais baixa. E outra, o mar não tinha acordo com ele mesmo. Existem partes mais fundas que outras; umas claras e outras mais escuras; outras partes que produziam ondas maiores enquanto havia partes que não faziam ondas tão grandes assim.
O mar não tinha nenhum tipo de compromisso. Ele apenas era o mar. Foi ai decidi que eu seria como o mar, não iria buscar nenhum tipo de compromisso, com nada nem ninguém. Nem comigo mesmo.
      Então todo dia eu acordava cedo, me arrumava, saia de uniforme e uma muda de roupa na mochila. Apenas saía. Não parava mais no ponto. Eu ia a onde queria, fosse uma cidade perto daqui ou mesmo a orla, apenas deixava minha mente divagar e o lugar perfeito do dia logo surgia nitidamente na minha cabeça.
      Meus pais?
      Olha... você tocou num ponto complicado.
      Não sei o que pensar do meu pai. Ele... Ele... sei lá, confiou em quem não devia? Aqueles amigos dos bares que o deixavam bêbado e se aproveitavam porquê meu pai era o que mais tinha dinheiro entre eles.
      Isso é só uma teoria, mas deve ter sido isso.
      Resumindo: meu pai sumiu, ele não demorou muito pra acompanhar meu irmão. O velho simplesmente saiu pra beber. Foi no bar de sempre, saiu já cambaleando com seus "amigos" e não apareceu mais. Foi o que disseram pra minha mãe. Como se a gente pudesse confiar em bêbados.
      Isso só acabou com minha mãe mais ainda.
      Como assim?
      Ela toma remédios. Dados pelo psiquiatra. Um psiquiatra é só mais um psicolólogo, só que, no lugar de palavas, ele usa remédios. Aqueles remédios com faixa preta na caixa. Aqueles remédios que só são vendidos com atestados. Remédios com nomes tão complicados que nem minha mãe sabe como falar, mesmo que os nomes estejam escritos na caixa.
      Por que ela os toma?
      Eu falei do meu irmão agora a pouco não foi? Disse que ele tinha sumido.
      Pra ser sincero eu odiava meu irmão. Ele era o mais velho, era maior, mais esperto. Era um daqueles raros exemplos de boa pessoa, daqueles que gostam de se aventurar em tudo com um ânimo e um grande sorriso que contagia quem está por perto. Não era bom em tudo que tentava, isso é verdade, mas ele se esforçava ao máximo. Ele buscava a melhor convivênca com todos ao redor. E foi isso que o matou.
      Essa é só mais uma teoria, não me leve a mal. Mas ele tinha arrumado novos amigos. Claro, podia não fazer as mesmas coisas que eles faziam, mas andava com eles e isso já é motivo suficiente nos dias de hoje. Eu, meu pai e minha mãe não conhecíamos bem esses novos amigos.
      E eis que chega a noite.
      Meu irmão chega em casa com dois desses amigos, obviamente chapados de beber, fumar, cheirar e seja-la-mais-o-que-for-que-faziam. Mas não se preocupe, meu irmão não fazia essas coisas. Realmente não fazia. Ele chegou em casa com os amigos, disse que estavam com problemas e que iria leva-los até suas casas, para garantir que chegariam bem.
Acho que minha mãe sabia que aquela era a última vez que ela o veria. Ela abraçou ele tão forte que dava impressão de que não ia mais soltar, como se dissesse "fique aqui," como se ainda pudesse invocar aquela sensação de seguraça que um abraço de mãe tem e que aos poucos vai perdendo, enquanto os filhos crescem.
      Isso foi há quatro anos.
      Depois dele foi o meu pai.
      E minha mãe também se foi.
      Eu sei do que estou falando. Depois do que aconteceu com meu irmão ela começou a se isolar. Resolveu ir ao psicológo. Um cara que cobrava pra ela falar sobre ela e pronto, dizia que isso era o suficiente. E ela acreditou, confiou. Parece que é hereditário esse problema na minha  família, se agarrar a primeira coisa que surge como se aquilo fosse a maior das salvações.            Depois que meu pai se foi minha mãe piorou, então o psicólogo a mandou para o psiquiatra,  que a intupiu de remédios.
      Eu disse que era um assunto complicado...
      Mas então... Eu me desviei do assunto não foi? Mas foi até bom soltar essas coisas.
      Para que você, seja la quem for, consiga me entender.
      Onde eu estava?
...
      Ah sim, eu decidi não ir mais a escola. Decidi viver por viver, sem compromissos.
      Sim, eu voltei pra escola.
      Por que eu voltei se estava gostando de daquela vida?
      Ei, não se perca nas coisas que estou escrevendo, se não entender volte e leia de novo.
      Mas vou lher explicar melhor dessa vez: Eu disse que não vou mais buscar acordos ou compromissos, isso são pedras que escolhemos amarrar em nós mesmos. E falhamos. Vamos falhar. É da natureza humana falhar. Sempre que assumimos um compromisso com alguém estamos dando um tipo de permissão a essas pessoas, uma especial: a de que podem nos subjugar se falharmos. E falhamos. Essas pessoas se sentem traídas. E então elas nos atiram no mar de expectativas fracassadas delas.
      E quanto nós?
      Nós estamos amarrados a pedras, tijolos, pedaços de concreto. A nós, que falhamos mais que a maioria, só nos resta morrer afogados.
      Sim eu voltei pra escola ontem, mas eu não tinha mais nenhum compromisso com a escola.
      A questão sou eu. Se eu não aceito, não assino, o compromisso não existe.
      Mas não voltei simplesmente. A escola não foi o lugar do dia que surgiu na minha mente. Foi por causa dele. Um homem que se parecia com meu irmão.
      Se meu irmão não tinha morrido?
      Olha Leitor, cale a boca. Só escuta, leia ou sei lá
      Se bem que eu acho que ninguém vai parar pra ler coisas escritas num qualquer caderno deixado num banco qualquer.
      Mas, então, o cara não era meu irmão, tenho quase certeza. Era maior, mais musculoso e tinha o braço esquerdo fechado de tatuagens, certamente uma coisa que meu irmão faria. Mas o jeito de andar, isso que me assustou. Era extamente o mesmo jeito peculiar, os ombros saltando a cada passo.
      Não sei o motivo, mas eu queria sair dali. Não apenas partir sem rumo, apenas sair o mais depressa. Então caminhei, dei meia volta e segui entrando em ruas sempre que surgiam. Só depois percebei que estava dando voltas no quarteirão. Depois resolvi seguir alternando, numa rua virava a esquerda na outra seguia pela direita.
E é mais do que óbvio que eu acabei passando por uma escola. Era do primário, mas ainda assim era uma escola. Fiquei uns poucos minutos parado observando e ouvindo as crianças bricarem.
      Deve ter sido o suficiente, já que no dia seguinte eu quis esperar o ônibus. Quis ir à escola.
      Eu cheguei lá e... Nada.
      Quase três semanas sem dar as caras e as pessoas da minha turma (as únicas que com quem tenho interação) me chamaram de turistae riram. Como se chamar alguém de turista fosse considerado uma boa piada. Só a Lay e o Maicon perguntaram como eu estava. Mas foi surpeficial. Aquelas perguntas que a gente faz só pra ser educado. OS professores me olharam com indiferença. Tanto faz eu estar aqui ou não. Como eles mesmos já disseram "o dinhero vai car na conta mesmo."
      Mas teve ele.
      O Cara de Física.
      Na verdade ele é o professor substituto que veio pra ficar no lugar de um outro porofessor que nunca apareceu para dar aulas.
      O Cara de Física entrou na sala e seus olhos correram a turma toda, parando em mim, tenho certeza. Ele suspirou, suas sombrancelhas caíram, relaxaram, como se uma preocupação enorme, de tirar o sono, tivesse simplesmente evaporado. O olhar dele era simples, como se me dissesse "ah, então você está bem. Que bom, estive preocupado."
      E eu não gostei disso.
      Não mesmo.
      Era como se ele estivesse me convidando para próxima aula, e pra próxima, e a próxima. Eu não iria alimentar isso. Não vou assinar esse acordo. Selar esse compromisso.
E aqui estou eu. No banco onde decidi que seria um mar. Não vou voltar. Não sei pra onde vou, e, acredite, isso não me assusta. Me assusta mais pensar em ficar.
      Por isso estou terminando aqui.
      Já disse tudo.
      Eu acho que disse.
      Não sei.
      Só tempo junto com as consequências das coisas que eu fizer e escolher dirão se isso é tudo ou não.
      Ao menos dirão se foi alguma coisa.

VictorWhere stories live. Discover now