Capítulo 2

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Ribatejo, 1988

- Mãe, posso ir brincar? – perguntou o garoto, como se brincar fosse algo proibido na sua idade.

Antes que Joana pudesse responder, ouviu a voz do marido vinda da sala.

- Afonso! Já largaste o milho às galinhas?

O rapaz de nove anos olhou para a mãe como a desculpar-se da falha, e viu-lhe a aflição nos olhos.

Afonso sentiu o sangue a ferver nas veias.

- Vem cá! – berrou a voz masculina.

Afonso correu até ao pai, sabendo que se demorasse mais um segundo a sova seria maior.

- Deitaste comida às galinhas? – repetiu a pergunta.

O garoto abanou a cabeça, incapaz de mentir, mesmo sabendo que a falha lhe ia custar umas quantas correadas.

- Vira-te – ouviu-se.

Joana já sabia o que aquilo significava.

A mãe sempre lhe dissera que o papel da mulher era também obedecer ao marido mas, um dia sabia que não ia responder por si, e desancava-lhe uma cadeira pela cabeça abaixo. Já faltara mais. Não suportava ver os olhos meigos do filho, cheios de mágoa e dor a ser sovado por Adérito. Criança nenhuma devia passar por aquilo, dizia-lhe a amiga Teresa, sempre que falavam no assunto e estava carregada de razão. Mas qualquer coisa dentro de si se iria partir se um dia tivesse de abandonar o marido. Não era mulher para viver sozinha, o preço a pagar era demasiado e não iria suportar as línguas viperinas da aldeia.

Joana ouviu o cinto, uma e outra vez acompanhado dos gemidos da criança, até perfazerem cinco correadas. Desta vez foram só cinco, porque Adérito só abrandava quando se fartava e por vezes não se fartava, deixando o filho estendido no chão, chegando ao ponto de lhe marcar as costas.

Afonso gemia de dor, mas não gritava e, nessa contenção, a mãe adivinhava-lhe a raiva e o ódio que ele ganhara ao pai, temendo que um dia, quando ele crescesse o feitiço se virasse contra o feiticeiro e Afonso matasse o pai.

Nos dias como o de hoje, cada vez mais frequentes, Joana sentia-se a pior das mães à face da terra. Não era capaz de se voltar contra o marido, por medo e por educação. Fora educada para ser submissa aos homens tal como o fora ao seu pai, sem que ele precisasse de lhe bater para o conseguir, mas o seu querido paizinho, como lhe chamava, era um homem bom, compreensivo e afável com as filhas, pois Deus apenas lhe dera mulheres. Hoje Adérito ia bater no garoto todo o dia.

**

- Hoje ainda acontece uma desgraça Teresa! – gritou Joana ao telefone. - O meu Adérito não para de bater no Afonso, por todos os motivos e mais algum. Parece que odeia o filho. Depois cai nele, chora e não se conforma com o que fez! O raio do homem! Diz que já não é um homem inteiro só porque lhe falta um pedaço da perna. Por favor amiga, leva o meu Afonso contigo, receio que ele mate o cachopo com o cinto. Os nossos homens voltaram malucos daquela maldita guerra Teresa. Oh Deus! Se existes acaba com este sofrimento! – levantou as mãos em prece para o céu.

Joana Simões era a desolação em pessoa.

- Levo sim, Joana. Chama lá o garoto que eu faço por ele, sabes que nem precisas pedir. Ele e a Marta dão-se bem e não quero ficar com pesos na consciência, se acontecer alguma coisa. Mas Joana, tu leva o homem ao médico. O teu homem sempre foi muito vaidoso da sua boniteza, não se conforma de já não ser uma estampa como outrora. Raio do homem! – praguejou Teresa. - Dizem que em Lisboa há bons médicos para a cabeça. O teu homem não era assim antes de partir. Deve haver alguma coisa que ele possa tomar que o acalme. E porque é que ele não usa a perna postiça, como o Zé Vargas? Esse desunha-se a andar por aí e até já trabalha na lavra às vezes quando não lhe dá para andar aos tiros pela lezíria.

A Cápsula do TempoWhere stories live. Discover now