– AMOR, EU AINDA NÃO CONSIGO ACREDITAR NA INCOPETÊNCIA DAS AUTORIDADES. – bradou Nathalia, incrédula. – Eles não encontraram os corpos dos teus irmãos e simplesmente esqueceram o caso, sem mais explicações?
– Foi mais ou menos isso. O xerife foi bem claro quando conversamos. Após o meu depoimento, ele me contou que a polícia fez uma vistoria geral pela fazenda, principalmente na cachoeira. Não encontraram os corpos. – Guto fez uma pausa e acrescentou. – Mas, respondendo à tua pergunta, não há a menor possibilidade de eles estarem vivos e... mesmo que tivessem sobrevivido à queda, Beca jamais deixaria Lucas vivo... ela é... era um monstro.
Nathalia calou-se por um instante. Toda essa história era extraordinária demais. Como os oficiais nunca encontraram os corpos? Estava surpresa, mas teve que se conter ao notar o estado do namorado.
– Acho que você precisa resolver essa tua pendência com o passado, meu amor. – sugeriu Nathalia, segurando a mão de Guto. – Você está precisando se livrar dessa culpa, desse medo, de todas essas coisas que te atormentam e te impedem de viver em paz.
– O que é que você está querendo dizer, Nath? – questionou Guto, aflito. – Você não está sugerindo que...
– Eu acho que você precisa voltar à fazenda. – completou Nathalia, ainda que com receio da reação de Guto. – Você precisa ver com os próprios olhos que não há nada a temer. Você precisa desse conforto, para, só então, conseguir superar o trauma.
Guto não estava conseguindo, sequer, assimilar o que acabara de ouvir. Em sua mente, surgiram lembranças de seu passado conturbado e das coisas que viveu após deixar a fazenda e ir para o orfanato.
********************
– Luis Gustavo Guimarães Malter, é esse o teu nome, certo? – indagou a assistente social ao garoto em sua frente. Guto, que estava cabisbaixo, apenas assentiu. A assistente continuou.
– Pelo o que eu leio nesse relatório, você já não possui familiares vivos. A lei é bem clara em relação a isso, meu querido. Recebi instruções para encaminhá-lo à uma casa de apoio que cuida de crianças como você. Para a tua felicidade, encontrei um local perfeito, fica em Porto Alegre e...
– Não, moça, por favor. – Guto, em prantos, interrompeu a moça. – Eu não posso ficar sozinho, não posso... não vou ficar bem... eu não estou bem, moça, por favor. – suplicou à assistente social.
– Mas você não estará sozinho, meu filho, pelo contrário. Na casa de apoio existem outras crianças, adolescentes e jovens. Eu imagino o quão complicado será para você no início, mas depois você acaba acostumando-se e, quem sabe, você pode até ser adotado por alguma família.
Ao ouvir aquilo, Guto sentiu o coração despedaçar. Aquelas palavras foram muito duras. Mais uma vez sua ficha caiu, ele estava sozinho no mundo. Não tinha um só ente familiar a quem pudesse recorrer. A assistente social, vendo-o naquele estado, buscou amenizar a situação.
– Meu filho, a casa de apoio não é nenhuma prisão, está bem? Lá existem outras crianças da sua idade, elas poderão te ajudar a preencher o vazio que você está sentindo neste momento.
Guto ouvia cada palavra atentamente. Não conseguiu mais falar e mesmo que conseguisse, não o faria, pois sabia que não ia adiantar. A única certeza que tinha em vida era que nunca mais colocaria os pés na fazenda de sua avó. Precisava esquecer tudo o que viveu naquele lugar, mesmo que considerasse isso impossível.
Uma semana depois, Guto se encontrava na casa de apoio. As freiras, que administravam o local, a princípio, o trataram bem, principalmente por saberem de tudo o que ele tinha passado. As refeições eram feitas no horário certo e Guto passava boa parte do seu tempo livre na biblioteca, pois havia adquirido um enorme gosto pela leitura e ansiava tornar-se escritor. Na semana seguinte ele passaria a ter aulas e, aos poucos, ele iria se adaptando à nova realidade. Durante o dia, as coisas iam bem, mas à noite era totalmente diferente. Guto sempre tinha pesadelos com a fazenda e, em seu íntimo, se culpava por toda a tragédia envolvendo a família.
Não bastassem os conflitos internos, ele começou a ter problemas com um dos adolescentes que vivia na casa de apoio. Felipe, um garoto de dezesseis anos, passou a persegui-lo, sem razões especificas. Taxava Guto como fraco, mimado e fazia questão de deixar isso bem claro, não poupando palavras quando o assunto era atormentá-lo.
– Ora, ora, então você é o garoto novato de quem eu tanto ouvi falar? – disse Felipe, no primeiro contato que teve com Guto. – Sabia que correm por aí boatos de que você é um mariquinha que apanhou da irmã caçula e deixou que ela matasse toda a família, é verdade? – indagou, provocando.
Guto, naquele instante, fechou os olhos e começou a ouvir umas vozes vindo de dentro de sua cabeça. No entanto, ouvia as provocações de Felipe em silêncio. Sabia que não deveria deixar-se irritar com aquilo, por mais que isso fosse difícil. Além disso, em partes o garoto estava certo. Guto sentia-se culpado pela morte dos familiares, principalmente pela de Lucas. Contudo, ali, naquele novo ambiente, tudo o que ele queria era paz e sossego, sua cota de coisas ruins já tinha se esgotado há tempos.
– Qual foi, marica? Por um acaso eu estou falando grego com você? – insistiu Felipe. – Não vai me dizer que, além de mariquinha, é surdo? Seria muito azar para uma só pessoa. Não me surpreende ter apanhado da irmã, inválido do jeito que é.
– Eu só não quero confusão... – respondeu Guto, cabisbaixo. – Então, por favor, me deixa em paz.
– Ah, então a donzela fala. – Felipe aproximou-se de Guto e ainda em tom de deboche, acrescentou. – E se eu não quiser te deixar em paz, você vai fazer o quê?
Impaciente e já sem conseguir conter sua raiva, Guto, num rápido movimento, virou-se empurrando Felipe fortemente que, com o impacto, caiu no chão. Pulando sobre ele, Guto começou a desferir vários socos no rosto do garoto, quebrando-lhe o nariz que, a esta altura, já estava jorrando sangue.
Uma das irmãs que residia ali, ao presenciar tal cena, correu em direção aos meninos, apartando a briga. Guto permaneceu com a expressão de outrora. Parecia até outra pessoa, seu olhar estava diferente. Felipe foi instruído a ir à enfermaria, cuidar dos ferimentos, mas antes de ir, encarou Guto, o ameaçando.
– Você é um homem morto, Malter...
Guto foi levado pela irmã até um quarto solitário, onde ficavam de castigo aqueles que aprontavam. O ambiente era totalmente diferente dos demais. Era sujo, fedorento e, pior, um pouco escuro, parecia mais um calabouço do que um quarto.
– Eu estou muito decepcionada com você, Luís Gustavo. Durante o tempo em que vivo aqui, nunca tinha presenciado uma cena tão violenta quanto a de agora a pouco. – disse a irmã, encarando Guto com um olhar triste. – Você está bastante encrencado.
A irmã saiu, trancando a porta pelo lado de fora. Guto permaneceu ali, parecia aéreo, distante. Ficou fitando suas mãos por alguns instantes, até se dar conta de que estavam lavadas de sangue. Sentiu um calafrio percorrer sua espinha e, naquele instante, foi capaz de enxergar em seus braços as marcas estranhas que, no passado, preenchiam os braços de Rebeca. Trêmulo, sentou-se no chão e ali permaneceu.
********************
– Não, Nath, eu não posso voltar lá. Eu não consigo e nem devo voltar naquele lugar. – bradou Guto, ainda assustado com as lembranças que teve. Levantou-se e saiu do quarto apressado, sequer olhou para trás.
Nathalia,vendo a situação em que ele se encontrava, apenas respeitou o momento e odeixou quieto, talvez Guto precisasse ficar um momento sozinho.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Descendência Malter (Em processo de revisão )
HorrorQuinze anos se passaram desde o ocorrido na fazenda Malter. Guto, ainda que com cicatrizes, tentou seguir sua vida. Estudou, trabalhou, formou-se em administração e hoje, ao lado da namorada Nathalia, viveria uma vida razoavelmente boa em Porto Aleg...