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Sobre seu corpo, apenas uma bata grossa de linho, larga, mal costurada e suja. Um buraco para enfiar a cabeça. Pés descalços. Cabelos negros. Desalinhados, pingava gotas de suor. Pele queimada do sol. Nos pulsos, mãos e tornozelo, as marcas da tortura. Ferido nos pés. Manchas roxas de pancadas. Sangue pisado nas faces. Grilhões e correntes de ferro prendiam pulsos e tornozelos. Não teria mais que vinte anos.
Os olhos. O que me chamo atenção foi o brilho dos olhos. Castanhos. Como se guardassem ali uma força vinda não sei de onde. Surpreendentemente, eles se mantinham vivos, como se iluminados por uma luz interior. Cravados em seus executores. Apesar da condição de prisioneiro, parecia superior a tudo e a todos. O desprezo era evidente. Fixos, brilhantes, os olhos reforçavam a expressão do moço. Eles deixavam ver uma certeza e uma obstinação que me hipnotizavam. De cabeça erguida, ele desafiava as pessoas que estavam ali. Havia uma vontade oculta atrás daquele olhar.
A multidão que se formara para ver o grande espetáculo se agitava. Homens, mulheres e crianças, imundos e esfarrapados. Falavam ao mesmo tempo. Moleques atiravam pedras no prisioneiro. O som das vozes subia e descia, como ondas. Consegui captar algumas palavras. Era um idioma estranho, que, para minha surpresa, eu conseguia compreender. Assim, descobri o que meus olhos ja sabiam. O moço era um feiticeiro, condenado a ser queimado vivo.
Com dificuldade, os soldados continham um pequeno grupo de ciganos. Entre eles, um rapaz. Cabelo claro, ligeiramente encaracolados. Brinco na orelha esquerda. Pouco mais velho que o moço. Rosto molhado de lagrima. Músculos retesados, como os de uma fera preste a atacar.
Prestei mais atenção às conversas ao meu redor. Ao idioma. Era espanhol, mas não o que se fala hoje em dia. O que eu ouvia agora era truncado, com sons guturais que pareciam raspar o céu da boca. Talvez fosse um dialeto. Ou espanhol arcaico.
Tomei consciência de mim mesmo. Era eu. Mas ao mesmo tempo não era. Olhei para minhas mãos. Grandes e morenas, pousadas sobre um traje de veludo negro pesado e rústico. Eram minhas mãos. Mas não eram! Meus dedos são longos. Aqueles eram grossos, maltratados. Nunca uso anéis. Naqueles dedos havia muitos. Um deles, especialmente, incrustado em ouro.
Bem perto de mim, em um trono de madeira. De valor. Antiga. De familia. Brincos de ouro e pedras preciosas. Uma corrente também de ouro, formada por elos gigantescos, da qual pendia um enorme crucifixo. Na cabeça, uma coroa repleta de pedrarias. Os cabelos negros, puxados para trás, lhe dava uma aparência de altivo. Lábios finos. Traços severos. Mesmo assim, tinha certa beleza. Eu sabia de quem se tratava. Era o rei, que conservava o luto havia muitos anos, desde a morte do seu marido. Fixei meu olhar naquele homem. Ele correspondeu e me lançou um leve sorriso. De satisfação? De vitória? 
Onde eu estava? 
Era o palácio de um castelo de pedra. Medieval. Nossos assentos haviam sido acomodados em uma estrutura de madeira. No alto, o trono do rei. A multidão amontoava-se, em pé, dos dois lados do pátio. A lenha à nossa frente estava pronta para ser incendiada. O rei, a corte, os padres e os sacerdotes, prontos para assistir à execução. Minha garganta doía. Parecia sufocado. Queria gritar, mas o grito estava preso. Queria me mexer, mas me sentia paralisado. Uma onde de impotência abateu-se sobre mim. Não podia suporta o que estava para acontecer. 
Quis entender quem era eu, por que estava lá. Meu rosto, como seria? Não havia espelho para ver meus próprios traços. Observei minhas roupas. Vestia uma túnica purpura sobre o traje negro. Nos pés, botas de couro. Senti um peso sobre a cabeça. Ergui as mãos. Toquei uma espécie de chapéu. Ou melhor, não exatamente um chapéu, mas algum tipo de adereço cerimonial.
O grito da multidão tirou-me do devaneio. O moço foi empurrado pelos soldados. Mesmo assim, manteve-se de pé. Caminhou, ainda de cabeça erguida. Senti um ímpeto de levantar da cadeira suntuosa em que estava. De enfrenta os soldados. Levá-lo para algum lugar distância. Não me movi. Assisti a seu andar altivo em direção ao poste em que seria amarrado. Troncos e gravetos dispostos ao redor dele pareciam um emaranhado de teias prestes a se desfazer. Ali ele seria queimado vivo.
Imóvel. Para meu horror, permaneci imóvel. Meu coração padecia querer saltar do peito. Aind sim, continuei sentado. Envergonhado de mim mesmo. De minha corvadia. Tinha certeza de que seria impossível enfrentar os soldados que cercavam o condenado. O medo me deixava prostrado. Senti o olhar do rei em mim. Ergueu o queixo, rios membros da corte me olharam com respeito e inveja. O gesto real equivalia a uma honra. Para mim, não tinha valor algum. Se eu pudesse pedir clemência para o condenado! Soltá-lo, livre de qualquer acusação.
Meus pensamentos voaram. Mas meus olhos continuavam presos a ele, observando seu andar determinado, seu olhar penetrante. De repente a verdade me atingiu como raio. Eu o amava! Sim, era isso! Queria abraça-lo. Beija-lo. Levá-lo para longe dali, a salvode seus algozes, e talvez admirar a lua e as estrelas juntos com ele, como fazem os apaixonados. No mais profundo silêncio, apenas me deixando envolver pelo prazer de sua presença.
Foi só um desejo, um sonho acordado, rápido, que passou por mim como um golpe de vento. Voltei a ter consciência da realidade. Desejava ter a força dos mundos para salvá-lo. Impossível. Eu me senti fraco, afogado no meu próprio medo, na covardia. E, assim, continuei em silêncio.
Baixei os olhos. Não conseguia olhar para ele sem que uma grande vergonha me invadisse. Vi a terra seca, estorricada. Sol forte. Calor horrível. O peso das roupas tornou-se maior. Não chovia havia muito tempo. As vinhas secaram. Feiticeiras eram queimadas para obter a graça de Deus. Restaurar a ordem do mundo, trazera a chuva e a prosperidade de volta.
Alguém gritou.
O jovem cigano quis se atirar sobre os soldados. Seus companheiros o impediram. Se tentasse libertar o homem, morreria também
Ele subiu os degraus que levavam ao alto da estrutura da madeira. Dois soldados a conduziam. Retiraram os grilhões de seus pulsos e tornozelos. Somente para, em seguida, amarrá-lo com cordas ao poste. Os soldados desceram, deixando o prisioneiro sozinho sobre a lenha seca.
O executor ergueu a tocha. Ia acender a fogueira.
Senti um baque no coração.
Dali a instante seria tarde demais.
O desprezo me fez superar a covardia. Tentei me ergue. Não pude fazer gesto sequer. A mão do capitão da guarda pousou firmemente sobre meu ombro, impedindo qualquer movimento. O sangue latejava em minha cabeça. Curvei-me para disfarçar as lagrimas. Meu gesto durou poucos segundos. Senti o olhar do prisioneiro cravado em mim, tão sólido quanto o toque de uma pessoa. Ele me encarava. O rosto,  imóvel. A expressão de quem condena.
Nossos olhares se cruzaram. Naquele instante, o tempo real não existia. Nossos olhos se mantiveram fixos um no outro. Parecia não haver mais nada ao redor. Estávamos acima da dimensão do tempo, paralisado pela mensagem que só os olhos da alma pode trocar. Foi um instante, apenas um instante, um instante mágico como a eternidade, que acontece raramente na vida de cada um. "Adeus", eu disse no meu coração. Lágrimas? Não podiam cair. Não. Os dele continuavam secos. A secura dos realmente corajosos.
Um soldado tocou um instrumento de sopro de som fino e cortante. O verdugo baixou a tocha. Notei uma Bíblia antiga e pesada a meu lado, numa baqueta. Agarrei-a com força. Era só o que me restava. A Bíblia.
O povo gritava em êxtase. A tocha incendiou os primeiros pedaços de madeira seca. A lenha ardeu. As chamas elevaram-se.
O moço desviou os olhos para o rapaz, que chorava. Quase sorriu, apesae das chamas que subiam depressa. Dolorosamente, percebi que ele já sentia o calor abrasivo da fumaça invadindo suas narinas.
E novamente voltou  a cabeça em minha direção. Olhos intensos, mas estranhamente imóveis. Uma labareda lambeu seu traje rústico. As chamas subiram. Logo atingiram seus cabelos.
Seu corpo transformou-se numa tocha. Mas seus olhos! Ah, continuavam fixos em mim! No último instante, antes que seu rosto desaparecesse entre a vermelhidão do fogo, ele  sussurrou algumas palavras. Impossível decifrá-la. Mal consegui ver seus lábios, mas tinha certeza: eram dirigidas a mim. Senti um sobressalto. O que teria dito prestes a morrer?
Em agonia, assisti ao fogo devorar suas pernas, seus braços, seus cabelos. Pôr fim a sua vida. E fiz uma promessa no meu coração. Palavra por palavra, inscrita na minha alma.
      "Eu te amarei para sempre! Para sempre!"

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⏰ Última atualização: Sep 06, 2019 ⏰

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