O teste do guarda-chuva

84 15 71
                                    

- Agora senta aqui quietinho - José manda em tom severo. Carlinhos senta-se obedientemente e olha atentamente para um desenho qualquer que para José tem uma estética sem graça.

Faz pelo menos uns dez minutos que ele está tentando achar algum balde para poder lavar a casa. Entre gritos de "Sai daí!" e "Cuidado!" ele não conseguiu achar o que estava procurando e isso só aumentava sua irritação com os sobrinhos. Era a segunda vez que seu irmão tinha reunião naquela semana e deixava seus filhos com ele. José não reclamaria tanto se as crianças fossem minimamente disciplinadas e ele precisasse dizer apenas uma vez "Não faça isso e não vá lá". Porém, tinha de ficar repetindo ordens e conselhos de minuto em minuto, enlouquecido por eles serem tão desobedientes.

- O que é isso? - Pergunta Valéria parando na sua frente enquanto ele procurava pelo balde de baixo da pia.
José olha impaciente para onde ela aponta e vê o pote de bolachas coloridas que sua mãe havia feito no dia anterior.

- O que você acha que é Val? - Pergunta levantando as sobrancelhas. 7 anos trabalhando como auxiliar de educação infantil o tinham treinado para saber quando uma criança sabe a resposta para a pergunta que está fazendo.

- É bolacha? - Pergunta ela olhando-o com um ar que julga ser de ingenuidade.

- Você acha que é bolacha? - Retruca José testando-a.

- Acho que é bolacha - confirma ela com um sorriso arteiro.

- Se quiser uma vá brincar lá fora que depois que eu lavar a casa te dou duas: uma pra você e outra pro Carlos. Ok? 

- Tá - a resposta é vaga: seus olhos já estão vagueando em direção à TV.

José sabe que se ela não gastar energias correndo no pátio vai acabar enlouquecendo-o até o fim do dia. Após conseguir fazê-la prestar atenção no acordo enxota-a para fora e volta à busca pelo balde.

Ele está mal-humorado. Passar a semana inteira trabalhando com seus alunos, e nos tempos de folga com seus sobrinhos, o deixam exausto em tempo integral. 

Finalmente encontra um balde na varanda da frente e é então que vê Valéria pulando de um barranco com o guarda-chuvas aberto.

- Não vai dar certo – avisa esquencendo-se completamente do balde, com uma pontada aguda de nostalgia acertando em cheio seu peito. O barranco é baixo e Valéria mal dobra os joelhos ao tocar os pés com força no chão.

- O quê? - Pergunta ela. Novamente, ele sabe que ela sabe do que ele está falando, mas desta vez não se importa em responder:

- Pular com o guarda-chuva aberto. Não vai dar certo. Eu já tentei – Faz uns vinte anos, é verdade. Mas ele ainda se lembra da esperança de que desse certo que nem nos desenhos animados, quando as personagens caem de algum avião ou penhasco e abrem um guarda-chuva preto e descem suavemente. E lembra da frustração ao perceber que aquilo não passava de uma mentira.... 

As leis da física não existiam para ele naquela época, e certamente não existem agora para Valéria. Sente uma profunda tristeza por ter dado aquela triste informação antes de Valéria ter tentado pelo menos mais umas cinco vezes, porém logo uma borboleta azul passa voando e ela se distrai e sai pulando atrás do bicho.

Toda a irritação de José passa como que num passe de mágica. Ver Valéria reencenando um momento da sua infância, o lembra do porquê da escolha de trabalhar com crianças: estar rodeado por elas o fazia lembrar constantemente do quanto o mundo podia ser mais belo se visto através da simplicidade do olhar. Estar entre crianças o fazia se sentir simplesmente bem.

Largando o balde, prepara uma jarra de suco, pega o pote de bolachas, um livro de contos e chama os sobrinhos.

Ao ver o brilho nos olhos deles quando chega na parte emocionante da história percebe porque entrar entre crianças o fazia se sentir bem: porque assim lembrava que, um dia, já havia sido uma.

O teste do guarda-chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora