NICK DUNNE
O DIA DO
Quando penso em minha esposa, penso sempre em sua cabeça. No formato dela, em primeiro
lugar. Quando nos conhecemos, foi na parte de trás da cabeça que eu reparei, e havia algo
adorável nela, em seus ângulos. Como um grão de milho duro e reluzente, ou um fóssil no leito de
um rio. Era o que os Vitorianos chamariam de uma cabeça belamente formada. Dava para
imaginar o crânio com bastante facilidade.
Eu reconheceria sua cabeça em qualquer lugar.
E o que havia dentro dela. Também penso nisso: sua mente. Seu cérebro, todas aquelas
espirais, e seus pensamentos disparando por essas espirais como centopéias rápidas e frenéticas.
Como uma criança, eu me imagino abrindo seu crânio, desenrolando seu cérebro e vasculhando-
o, tentando capturar e entender seus pensamentos. No que você está pensando, Amy? A pergunta
que eu fiz com maior frequência durante nosso casamento, embora não em voz alta, não à pessoa
que poderia responder. Suponho que essas indagações pairem como nuvens negras sobre todos os
casamentos: No que você está pensando? Como está se sentindo? Quem é você? O que fizemos
um ao outro? O que iremos fazer?
* * *
Meus olhos se abriram exatamente às seis da manhã. Não houve bater de cílios, nenhuma
piscadela suave em direção à consciência. O despertar foi mecânico. Um assustador abrir de
pálpebras de boneco de ventríloquo: o mundo é negro, e então, hora do show! 6-0-0, dizia o
relógio — na minha cara, a primeira coisa que vi. 6-0-0. Foi uma sensação diferente. Raras
vezes acordei em um horário tão redondo. Sou um homem de levantares quebrados: 8h43, 11h51,
9h26. Minha vida não tinha alarmes.
Naquele exato momento, 6-0-0, o sol se ergueu acima da silhueta dos carvalhos, revelando
todo o deus raivoso de verão que havia nele. Seu reflexo cruzou o rio na direção de nossa casa,
um comprido dedo apontado para mim através das leves cortinas do nosso quarto. Acusando:
Você foi visto. Você será visto.
Fiquei enrolando na cama, que era nossa cama de Nova York em nossa casa nova, que ainda
chamávamos de casa nova, embora já estivéssemos ali havia dois anos. É uma casa alugada bem
na beira do rio Mississippi, uma casa que grita Novo-Rico Suburbano, o tipo de lugar a que eu
aspirava quando criança, lá do meu lado da cidade com casas com andares em diferentes níveis e
carpetes felpudos. O tipo de casa que é de imediato familiar. Uma casa genericamente imponente
e nada desafiadora, nova, nova, a nova casa que minha esposa iria detestar — e detestou.
“Devo deixar minha alma do lado de fora antes de entrar?” Foi sua primeira frase ao chegar.
Tínhamos um acordo: Amy exigiu que alugassemos em vez de comprar um imóvel em minha pequena cidade natal no Missouri, com sua firme esperança de que não ficassemos presos aqui por muito tempo. Mas as únicas casas para alugar estavam reunidas naquele condomínio falido:
uma cidade-fantasma em miniatura composta por mansões detonadas pela recessão, com preço
reduzido, de propriedade dos bancos. Um bairro que foi fechado antes mesmo de abrir. Era um
acordo, mas Amy não via aquilo assim, de modo algum. Para ela, era um capricho punitivo de
minha parte, um egoísta dedo na ferida. Eu a estava arrastando, como um homem das cavernas, para uma cidade que ela evitara agressivamente, e a obrigaria a viver no tipo de casa da qual
costumava debochar. Suponho que não seja um acordo se apenas um dos dois vê dessa forma,
mas nossos acordos eram sempre assim. Um de nós sempre estava com raiva. Normalmente Amy.
Não me culpe por essa injustiça específica, Amy. A Injustiça do Missouri. Culpe a economia,
culpe o azar, culpe meus pais, culpe os seus pais, culpe a internet, culpe as pessoas que usam a
internet. Eu era jornalista. Um jornalista que escrevia sobre TV, filmes e livros. Na época em que
as pessoas liam coisas em papel, na época em que alguém se importava com o que eu pensava.
Eu chegara a Nova York no final dos anos noventa, o último suspiro dos dias de glória, embora
ninguém soubesse disso naquele tempo. Nova York estava abarrotada de jornalistas, jornalistas
de verdade, porque havia revistas, revistas de verdade, muitas delas. Isso quando a internet ainda
era um animalzinho exótico mantido na periferia do mundo editorial — jogue um biscoitinho para
ele, veja como dança em sua coleirinha, ah, que bonitinho, ele decididamente não vai nos matar
no meio da noite. Pense só nisto: uma época em que garotos recém-formados podiam ir para
Nova York e ser pagos para escrever. Não tínhamos ideia de que estávamos iniciando carreiras
que desapareceriam em uma década.
Eu tive um emprego durante onze anos, e então deixei de ter, rápido assim. Por todo o país,
revistas começaram a fechar, sucumbindo a uma súbita infecção produzida pela economia
detonada. Os jornalistas (meu tipo de jornalistas: aspirantes a romancista, pensadores
reflexivos, pessoas cujos cérebros não funcionam rápido o bastante para blogar, linkar e tuitar, basicamente falastrões velhos e teimosos) já eram. Assim como chapeleiros femininos ou
fabricantes de chibatas, nosso tempo chegara ao fim. Três semanas após eu ter sido demitido,
Amy perdeu o emprego também, se é que era um emprego. (Agora posso sentir Amy olhando por
sobre meu ombro, sorrindo com ironia do tempo que eu passei discutindo minha carreira, meu
infortúnio, e de como descartei sua experiência em uma frase. Isso, ela lhe diria, é típico. A cara
do Nick, ela diria. Era um bordão dela: A cara do Nick fazer... e o que quer que se seguisse, o
que quer que fosse a minha cara era ruim.) Dois adultos desempregados, passamos semanas
vagando por nossa casa no Brooklyn de meia e pijama, ignorando o futuro, espalhando
correspondência não aberta por mesas e sofás, tomando sorvete às dez da manhã e tirando longos
cochilos vespertinos.
Então, um dia, o telefone tocou. Era minha irmã gêmea na linha. Margo voltara para nossa
cidade natal após a própria demissão em Nova York um ano antes — a garota está um passo à
frente de mim em tudo, até na falta de sorte. Era Margo, ligando da boa e velha North Carthage, Missouri, da casa onde crescemos, e enquanto eu escutava sua voz, eu a vi aos dez anos, com
uma cabeleira escura e vestindo macaquinho, sentada no cais dos fundos da casa dos nossos
avós, seu corpo curvado como um travesseiro velho, suas pernas magricelas balançando na água,
olhando o rio correr sobre pés brancos como peixes, muito concentrada, sempre incrivelmente
contida, mesmo quando criança.
A voz de Go era calorosa e rascante mesmo para dar esta notícia desagradável: nossa
indômita mãe estava morrendo. Nosso pai já estava quase lá — sua mente (cruel), seu coração
(miserável), ambos funestos enquanto ele vagava rumo ao grande cinza do além. Mas parecia que
nossa mãe ia partir antes dele. Uns seis meses, talvez um ano, era o que lhe restava. Estava claro
que Go fora encontrar o médico sozinha, fizera anotações detalhadas em sua caligrafia desleixada
e estava lacrimosa enquanto tentava decifrar o que havia escrito. Datas e doses.
— Ah, merda, não tenho ideia do que é isso. Um nove? Faria sentido? — disse ela, e eu interrompi.
Ali estava uma tarefa, um objetivo, apresentado na palma da mão de minha irmã como uma
ameixa. Quase chorei de alívio.
— Eu vou voltar, Go. Vou voltar para casa. Você não tem que fazer tudo sozinha.
Ela não acreditou em mim. Eu podia ouvi-la respirando do outro lado da linha.
— Estou falando sério, Go. Por que não? Não há nada aqui.
Um suspiro longo.
— E Amy?
Eu não havia parado para pensar nisso. Simplesmente supus que poderia embrulhar minha
esposa nova-iorquina com seus interesses nova-iorquinos, seu orgulho nova-iorquino, afastá-la
de seus pais nova-iorquinos — deixar para trás a frenética e excitante terra do futuro que é
Manhattan — e transplanta-la para uma cidadezinha junto ao rio no Missouri, e tudo ficaria bem.
Eu ainda não havia entendido quão tolo, quão otimista, quão, sim, a cara do Nick era pensar
isso. A infelicidade a que isso iria levar.
— Amy ficará bem. Amy...
Era nesse ponto que eu deveria ter dito “Amy ama a mamãe”. Mas eu não podia dizer a Go que Amy amava nossa mãe, porque depois de todo aquele tempo Amy ainda mal conhecia nossa mãe. Os poucos encontros haviam deixado ambas perplexas. Amy passava os dias seguintes
dissecando as conversas — “E o que ela quis dizer com...” —, como se minha mãe fosse alguma
antiga camponesa tribal chegando da tundra com uma braçada de carne de iaque crua e alguns
botões para fazer escambo, tentando conseguir de Amy algo que não estava sendo oferecido.
Amy não fez questão de conhecer minha família, não quis visitar o lugar onde eu nascera e
ainda assim, por alguma razão, achei que voltar a morar na minha cidade seria uma boa ideia.
* * *
Meu hálito matinal esquentou o travesseiro, e eu mudei o assunto na minha mente. Hoje não
era dia de se arrepender ou de se lamentar, era dia de fazer. Dava para ouvir, vindo do térreo, a
volta de um som havia muito perdido: Amy preparando o café da manhã. Batendo armários de
madeira (rump-tump!), chacoalhando recipientes de lata e vidro (ging-ring!), arrastando e
escolhendo uma coleção de potes de metal e panelas de ferro (rush-shush!). Uma orquestra
culinária se afinando, tilintando vigorosamente rumo ao desfecho, uma forma de bolo rolando
pelo piso, batendo na parede com um som de címbalo. Algo impressionante estava sendo criado,
provavelmente um crepe, porque crepes são especiais, e hoje Amy iria querer preparar algo
especial.
Estávamos fazendo cinco anos de casados.
Fui descalço até a beira da escada e fiquei escutando, brincando com os dedos dos pés no
grosso carpete que ia de parede a parede e que Amy detestava por princípio, enquanto tentava
decidir se estava pronto para me juntar à minha esposa. Amy estava na cozinha, alheia à minha
hesitação. Cantarolava algo melancólico e familiar. Eu me esforcei para descobrir o que era —
uma canção folclórica? uma cantiga de ninar? — e então me dei conta de que era a música tema
de M*A*S*H. Suicídio é indolor. Desci as escadas.
Fiquei parado na soleira da porta, observando minha esposa. Seus cabelos amarelo-manteiga
estavam presos, o rabo de cavalo balançando alegremente como uma corda de pular, e ela chupava distraída a ponta de um dedo queimado, cantarolando. Ela cantarolava para si mesma
porque era uma destruidora de letras sem igual. Quando estávamos começando a namorar, uma
canção do Genesis tocou no rádio: “She seems to have an invisible touch, yeah”. E em vez disso
Amy cantou: “She takes my hat and puts it on the top shelf”. Quando perguntei a ela por que
achava que suas letras eram remota, possível, vagamente corretas, ela me disse que sempre
achara que a mulher na canção realmente amava o homem porque ela colocava o chapéu dele na
prateleira de cima. Eu então soube que gostava dela, gostava dela de verdade, daquela garota
com uma explicação para tudo.
É um tanto perturbador recordar uma lembrança calorosa e sentir-se profundamente frio.
Amy espiou o crepe chiando na frigideira e lambeu algo do pulso. Parecia triunfante, a típica
mulher casada. Se eu a tomasse nos braços, sentiria cheiro de frutas vermelhas e açúcar de
confeiteiro.
Quando ela me viu espiando de samba-canção velha, os cabelos totalmente em pé, se apoiou
no balcão da cozinha e disse:
— Olá, bonitão.
Bile e medo tomaram minha garganta. Pensei comigo mesmo: Certo, vá em frente.
* * *
Eu estava muito atrasado para o trabalho. Minha irmã e eu havíamos feito uma coisa tola
quando voltamos para a casa dos nossos pais. Fizemos o que sempre falávamos que queríamos
fazer. Abrimos um bar. Pegamos dinheiro emprestado com Amy para isso, oitenta mil dólares, um
valor que um dia não fora nada para ela, mas que na época era quase tudo. Jurei que devolveria,
com juros. Eu não ia ser um homem que pegava dinheiro emprestado com a esposa — podia
sentir meu pai fazendo uma careta apenas com a menção da ideia. Bem, há todo tipo de homem,
era sua frase mais condenatória, a segunda metade não dita: e você é o tipo errado.
Mas na verdade era uma decisão prática, uma jogada comercial inteligente. Amy e eu
precisávamos de carreiras novas; aquela seria a minha. Ela escolheria uma algum dia, ou não,
mas, enquanto isso, aquilo produziria uma renda, possibilitada pelo resto do pecúlio de Amy.
Assim como a ridícula casa que eu alugara, o bar aparecia simbolicamente em minhas
lembranças de infância — um lugar aonde apenas adultos iam, fazer o que quer que fosse que
adultos faziam. Talvez por isso eu tenha insistido tanto em comprá-lo após ter sido privado de
meu ganha-pão. Era um lembrete de que eu era um adulto, afinal, um homem crescido, um ser
humano útil, embora tivesse perdido a carreira que havia me tornado todas essas coisas. Eu não
iria cometer aquele erro novamente: os rebanhos antes vigorosos de jornalistas de revistas
continuariam a ser abatidos — pela internet, pela recessão, pelo público americano, que preferia
assistir à TV, jogar video games ou informar eletronicamente aos amigos que, tipo, chuva é uma
droga! Mas não havia aplicativo para uma onda de bourbon em um dia quente, em um bar fresco
e escuro. O mundo sempre vai querer uma bebida.
Nosso bar é um bar de esquina, com uma estética de colcha de retalhos. Seu melhor elemento
é um enorme balcão vitoriano ao fundo, cabeças de dragão e rostos de anjos brotando do
carvalho — um extravagante trabalho em madeira nesses dias de plástico vagabundo. O restante
do bar é, de fato, vagabundo, uma exibição das mais pobres ofertas do design de todas as
décadas: um piso de linóleo da época de Eisenhower, as beiradas viradas para cima como uma torrada queimada; paredes com um dúbio revestimento de madeira saído diretamente de um vídeo
pornô amador dos anos setenta; luminárias de piso com lâmpada halógena, um tributo acidental
ao meu quarto de alojamento dos anos noventa. O efeito final é estranhamente acolhedor —
parece menos um bar do que a casa bondosamente decadente de alguém. E jovial: dividimos um
estacionamento com o boliche local, e quando nossas portas se abrem, o barulho de strikes
aplaude a entrada do cliente.
Chamamos o bar de O Bar. “As pessoas vão pensar que somos irônicos em vez de
criativamente falidos”, raciocinou minha irmã.
Sim, achávamos que éramos espertos à maneira dos nova-iorquinos — que o nome era uma
piada que ninguém mais iria realmente sacar, não como nós. Não meta-sacar. Imaginamos os
locais torcendo o nariz: por que vocês o chamaram de O Bar? Mas nossa primeira cliente, uma
mulher de cabelos grisalhos, com bifocais e um agasalho de ginástica cor-de-rosa, disse: “Gostei
do nome. Como em Bonequinha de luxo, em que gato de Audrey Hepburn se chama Gato.”
Nós nos sentimos muito menos superiores depois disso, o que foi bom.
Entrei no estacionamento. Esperei que um strike soasse na pista de boliche — obrigado,
obrigado, amigos — e então saí do carro. Admirei as redondezas, ainda não entediado com
aquela visão: a atracada agência dos correios de tijolos claros do outro lado da rua (agora
fechada aos sábados), o prédio de escritórios bege despretensioso um pouco abaixo (agora
fechado, ponto). A cidade não era próspera, não mais, nem de longe. Que diabo, ela não era
sequer original, sendo uma de duas Carthage, Missouri — a nossa é tecnicamente a Carthage do
Norte, o que dá a impressão de que são cidades gêmeas, embora a nossa fique a centenas de
quilômetros da outra e seja a menor das duas: uma pitoresca cidadezinha dos anos cinquenta que
inchara até se tornar um subúrbio de porte médio e apelidava isso de progresso. Ainda assim, era
onde minha mãe crescera e onde ela criara Go e a mim, de modo que tinha alguma história. A
minha, pelo menos.
Enquanto eu caminhava na direção do bar, atravessando o estacionamento de concreto e ervas
daninhas, olhei para o final da rua e vi o rio. É o que eu sempre adorei em nossa cidade: não
havíamos sido construídos em um promontório seguro debruçado sobre o Mississippi —
estávamos no Mississippi. Eu podia descer a rua e entrar diretamente nele, uma queda fácil de
menos de um metro, e estaria a caminho do Tennessee. Todos os prédios do centro da cidade têm
linhas riscadas à mão no ponto a que o rio chegou nas inundações de 61, 75, 84, 93, 2007, 2008,
2011. E assim por diante.
O rio não estava cheio agora, mas corria com urgência, em fortes e viscosa correntes.
Movendo-se no mesmo ritmo que o rio, uma comprida fila indiana de homens, os olhos voltados
para os pés, ombros tensos, caminhava resoluta mente para lugar nenhum. Eu os observava e um
deles de repente ergueu os olhos para mim, seu rosto na sombra, uma escuridão oval. Desviei o
olhar.
Senti uma imediata e intensa necessidade de entrar. Depois de andar seis metros, meu
pescoço borbulha de suor. O sol ainda era um olho raivoso no céu. Você foi visto.
Minhas entranhas se contorce e me apressei. Precisava de uma bebida.
VOCÊ ESTÁ LENDO
GAROTA EXEMPLAR - Gillian Flynn
ChickLitUma das mais aclamadas escritoras de suspense da atualidade, Gillian Flynn apresenta um relato perturbador sobre um casamento em crise. Com 4 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo - o maior sucesso editorial do ano, atrás apenas da Trilogia...