Capítulo Único

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O único eu sou eu.

Você tem certeza que o único você é você?

Eu atravessei a porta mais uma dentre as incontáveis vezes que o fiz, agora não mais assustado com o ranger dos trincos metálicos velhos que me fizeram tremer até a alma quando a abri pela primeira vez. Ainda me sinto trêmulo, mas agora raiva se mistura com o medo de tal forma que não consigo separar os sentimentos.

O mesmo corredor, os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, o mesmo horário no maldito relógio digital. 23:59.

A mesma repetição: buscando diferenças que não existem, tentando ouvir coisas que não estão presentes, tentando abrir portas diferentes para descobrir que estão trancadas, assim voltando para a única que se abriria. Frustração era algo que eu já havia abandonado e o pânico inicial era apenas uma sombra em minhas ações.

Cada passo já havia sido dado, cada metro quadrado do lugar apertado já explorado. Eu poderia ter andado quilômetros nesse pequeno corredor, atravessando esse mesmo portal. O ranger dos trincos enferrujados já havia se repetido tanto que eu só o recebia com um revirar de olhos quando atravessava a porta mais uma vez.

O mesmo corredor, os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, o mesmo horário no maldito relógio digital. 23:59.

Eu olho para trás sempre que o faço, reabro a porta que atravessei tentando ver a mim mesmo caminhando para ela. Mas não vejo nada além do mesmo espaço. Tudo é exatamente igual, sempre. Já reparei nos quadros nas paredes, mas não são nada além de paisagens irreais e decorativas; já reparei nos porta-retratos no móvel junto ao relógio digital, mas são rostos sorridentes que não conheço.

O único eu sou eu.

Sinto olhos em mim a cada vez que abro a porta, porém, pode ser qualquer coisa menos alguém de fato. Nada aqui além de mim. 23:59.

Depois de já ter atravessado a porta vezes o suficiente para já não saber mais quantas vezes o fiz, comecei a me perguntar há quanto tempo estou fazendo isso. O porquê? Sei que se começar a pensar nisso vou... enlouquecer.

Estou atravessando essa porta há horas? Dias? Semanas?

Você tem certeza que o único você é você?

Os movimentos das minhas pernas são automáticos, eu só as deixo me levar enquanto olho para o mesmo corredor, os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, o mesmo horário no maldito relógio digital. 23:59.

Antes olho para trás, vendo a porta se fechar mais uma vez. Involuntário como seguir andando.

O único eu sou eu.

Lembro do meu nome, sei meu nome... eu tenho um nome, poderia repeti-lo em um mantra, mas busco não pensar sobre ele, deixo ele no fundo da minha mente, afinal, o que mais importa além de atravessar a porta? Nenhum som existe além dos meus passos no chão de madeira e do mesmo ranger da porta com trincos enferrujados.

Poderia fazer o caminho com os olhos fechados e ainda veria o lugar apertado gravado em minhas pálpebras assim que a porta se fechasse atrás de mim, verificando apenas com a audição se continuo sozinho no corredor que cheguei... no corredor que passei...

O mesmo corredor, os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, o mesmo horário no maldito relógio digital. 23:59.

O único eu sou eu.

Lembro vagamente de coisas que li sobre física quântica. Sobre universos paralelos e lugares onde as leis que entendemos não se aplicam. Coisas que li por curiosidade ou bêbado, que lembro apenas por ser conveniente, mas que, mesmo agora, soam ridículas.

O universo se dobra para fazer alguém atravessar uma porta infinitamente. Ridículo como os sorrisos nas fotos que já vi até a exaustão. Ridículo como o ranger dos trincos que alcança meus ossos.

Você tem certeza que o único você é você?

23:59. Há quanto tempo é 23:59? Anos? O horário me irrita, estou perdendo o controle.

Agarro o relógio digital em minhas mãos pela primeira vez... eu acho... sim, primeira vez. Reúno toda a força que tenho e o arremesso na parede, ouvindo com satisfação um barulho diferente preencher o ambiente por um instante precioso. Pedaços do relógio no chão aos meus pés, os chuto.

Jogo todos os porta-retratos no chão e faço o mesmo com eles, chutando-os até garanti que estão quebrados. Será que meu rosto está em um deles?

Olho para a porta fechada que passei novamente instantes antes, ficando parado diante dela, esperando a mim mesmo passar ali... mas, como nas infinitas vezes anteriores, nada acontece, não importando o tempo incontável que fique parado ali.

O único eu sou eu.

Sigo o corredor, abrindo a porta e atravessando-a mais lentamente dessa vez. É ridículo da minha parte esperar algo diferente e, exatamente por isso, a frustração retorna com força quando me vejo ali no mesmo corredor, com os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, e o mesmo horário no maldito relógio digital.

23:59.

Começo a correr quase disparadamente sem sentir minha respiração nem ao menos vacilar perante isso, apenas vendo tudo passar rápido por mim, repetidas e repetidas vezes.

23:59.

Tento abrir as portas trancadas. Jogo os quadros no chão. Corro.

23:59.

O mesmo corredor, os mesmos quadros de paisagens nas paredes com musgo, o mesmo horário no maldito relógio digital.

23:59.

Faço o caminho inverso. Nada além do ranger, dos meus passos na madeira. Espero a mim mesmo atravessar a porta.

Mas o único eu sou eu.

Atravesse a porta.

Você tem certeza que o único você é você?

Atravesse A PortaWhere stories live. Discover now