Capítulo 24 - Parte Única

46 15 0
                                    

O sino começa a tocar de novo, impedindo qualquer nova fala que pudesse ser dita. Penny toca minha mão, um biquinho lateral se formando em seus finos lábios avermelhados, quando ela passa o braço pelo meu e deita a cabeça em mim. O gesto é inocente e pacificador, acalma-me de um jeito estranho, mas bem-vindo.

Daniel e Kashka tomam lugar ao meu lado, noto com infelicidade. Este primeiro está quase se encostando a mim, em nossa caminhada, e tenho certeza que é proposital. Ignoro-o por inteiro, fingindo-me inconsciente de seu cheiro presente e notável, numa nota acentuada de qualquer coisa que possa se parecer com canela e orvalho, do gosto agridoce que brinca com meu paladar num jogo que não quero jogar. Impeço-me de aceitar a sensação do calor que emana por debaixo das grossas roupas de algodão grosso, de me fazer ciente da maneira como sua postura ereta e sólida parece tatuar-se em minha mente, mesmo que eu não o esteja vendo.

Seu jeito de se portar me lembra deles, e de suas manipulações.

O perigo está ali, à espreita sob a máscara que há em sua face juvenil e masculina, sob seus maneirismos que desconheço e sob cada característica que percebo ou não. Daniel é um predador, e não quero disputar território ou poder com ele. Não o quero perto de mim, pois imagino mil coisas que este tipo de pessoa pode fazer comigo - uma pior que a outra. Eu não estou disposta a passar por nenhuma delas.

Atravessamos a estrutura de uma das cabanas ouvindo o ruído de uma única voz. Chegamos à área dos jovens no exato instante em que Victoria está falando.

-... Devido aos recentes acontecimentos, não pudemos ter uma conversa mais esclarecedora sobre a Reserva e o que fazemos trazendo jovens e adolescentes para cá. Por isso, precisamos falar abertamente sobre quem vive aqui e o que vivenciamos neste lugar. Acho que já bastam de discursos, é hora de mostrar àqueles que não sabem o que alguns de nós fazem.O que eles são.

Cochichos soam e a atenção é capturada em poucas palavras. Victoria suspira. Eu estaquei no mesmo local, sem conseguir dar um passo sequer. Meus acompanhantes permanecem em minha retaguarda.

O que, é o que Victoria falou, ao invés de quem. A substituição não passa despercebida.

Finco as unhas na carne macia das palmas de minhas mãos, em cujas cicatrizes de meu primeiro dia aqui, que ainda não sumiram, estão. Apoio-me na parede da cabana, necessitada de uma estrutura sólida para manter-me em pé. Finco os dentes no lábio inferior para impedir-me de protestar, berrar, correr, ou fazer qualquer um dos impulsos tolos que minha imaginação perturbada pode formular.

Quando eu acho que as surpresas e revelações acabaram, dão um novo desafio de autocontrole à minha mente.

- Ela não vai... - Gaguejo para Frida, que fita com desconforto o mesmo ponto que eu.

Sua expressão é toda a resposta que preciso, mas mesmo assim ela me responde.

- Ah, ela vai.

Com um aceno da mulher, um dos jovens que se posicionava em seus calcanhares dá um passo à frente e fica em frente ao público, parado em uma posição que nos concede uma visão privilegiada de seu corpo, encostado na superfície de uma mesinha no centro da comunidade curiosa.

- Faça.

Após a ordem da mulher, sinto a mudança no ar.

Enrugo o nariz, sentindo o rarefeito pressionar minhas narinas como uma presença real e palpável, trazendo consigo um amargor típico na parte de baixo da língua, que desce em uma bolota por parte da minha garganta para parar em minha traqueia, inibindo a passagem de sangue em minhas veias, impedindo o movimento de meus pulmões contraídos. Quero tapar os ouvidos, pois é como se um ruído agudo se infiltrasse em meu cérebro. Mas não há nada para ouvir. O silêncio é total.

Não sei o que me transtorna mais.

Noto quando a mudança acontece. O acelerar de meu coração abalado faz meu corpo estremecer, o oxigênio ao meu redor parece ser direcionado a um ponto solitário longe de mim. Jamais esperei ver de perto algo parecido com isso e creio que não desejarei ver mais em toda minha vida.

O rapaz se curva em seu próprio corpo, apoiando suas mãos no móvel frágil que sustenta o peso do jovem, em meio um bambear. Ele o solta em questão de segundos para curvar-se mais sobre si mesmo. A expressão de dor é oculta quando ele se apoia no solo arenoso que é o centro do espaço, embora visão nenhuma seja necessária para que tenhamos a compreensão da aflição que ele sente - seus grunhidos vêm do fundo da garganta e são esclarecedores e cristalinos como água.

- Nori, calma.

O timbre baixo de Frida é seguido do aperto frio de Penny em minha pele, quando ela esconde o corpo em minhas costas. Seu chamado me atenta ao fato de que eu estava apertando as unhas em meu próprio antebraço, que jaz com cinco vergões pequeninos, avermelhados. Abro a mão.

Esbarro no braço de Daniel ao recuar, e ele parece contrair-se ao meu toque discreto. Sua pele está muito quente, um alto contraste com meu próprio corpo, e o de Penny. Quando o olho, seu rosto inexpressivo virando-se para minha direção por um ínfimo segundo, afirmo que foi nada mais que impressão. Seus punhos fechados com força, porém, negam sua calma.

Ele não demonstra com clareza, mas o fulgor que flameja em suas íris assegura um sentimento que, de certo, não é paz.

- O que é isso?

- Tirem essa coisa de perto de mim!

Gritos e protestos soam, ocasionando em meu olhar preso novamente à cena que se desenrola diante de mim.

Onde estava o rapaz, há pouco mais que meio minuto, podemos ver agora um animal enorme, grande e pleno em seu poder de predador, numa posição de poder e segurança, sem medo de ser encarado, admirado ou mesmo atacado. Uma besta maior que qualquer uma que pode existir em seu estado natural sem ser uma mutação genética.

Eu sei o que houve e não sinto a mínima tranquilidade que acreditei que sentiria, depois de minha decisão de ficar na Reserva.

- Acalmem-se todos! - Pede a arqueira, num tom alto.

Ela não é ouvida e vários dos espectadores estão levantando e afastando-se da cena do crime, fugindo com pressa do alcance do ser monstruoso e tencionando a possibilidade de uma fuga real morro acima.

Eles todos sentem, entretanto, o que eu sinto: o poder que o animal emana do corpo bestial, reinando entre nós. Somos meros mortais, incapazes de fugir de um ser selvagem e instintivo que tem como missão caçar. E matar. É por isso que a maioria fica quase que estática.

Eu estou entre estes.

- É sua culpa, Pierre! - Grita uma menina. - Eu disse que não queria vir para cá.

Vejo mais do que escuto Victoria lançar ordens que não sei para onde se direcionam. É impossível saber se minha mente se surpreende com a visão das duas figuras de braços estendidos e um tremor se iniciando no pedaço de terra que ocupamos até que galhos envolvam os corpos de cada um dos presentes, exceto os nossos próprios, por nos mantermos afastados e fora de vista.

Eu sequer me movi.

Deveria saber que não aceitaria fácil o mundo que me apresentavam. Deveria saber que não poderia ver um homem transformar-se em lobo em minha frente sem sentir-me consternada. Deveria saber que não conseguiria ficar aqui e ver tudo isso acontecer perto de mim sem ver uma miríade de cenários se formarem à minha frente como um pesadelo.

Mas não é mentira, não é um pesadelo.

É real.

***************************************

Não se esqueça de clicar na estrelinha!

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora