20º Capítulo

356 9 2
                                    

Estamos assim, abraçados à entrada para a minha casa sem nada fazermos. Passaram alguns segundos e nada. Abro os olhos. Por muito que sinta que estou no meu porto de abrigo sei também que ele não está bem.
- Passa-se algo?
Pergunto contra o seu ombro.
Ele nada diz. Apenas se desvia um pouco e olha para mim. Agora, uma imagem passa pela minha cabeça. Acho que sei o que se passa.
- Vem... - Consigo movê-lo para dentro de casa e fecho a porta.

Viro-me e vejo-o na sala, parado, a olhar para mim.
- Foi assim tão mau?
Pergunto ao de leve.
- Perdemos. A liderança foi para o Porto.
Bem me parecia que era uma coisa deste género.
- André, tiveram jogo a meio da semana... ressentiram-se. Além disso, têm alguns jogadores lesionados e-
- Fui expulso.
- O quê?!
Ponho as minhas mãos na cintura. Não me lembro de o André ser expulso ao longo destes anos. Se há jogador que se sabe controlar e dar-se ao respeito é o André.
- Devem ser dois jogos sem jogar. E mereci.
Franzo o sobrolho. Estava à espera de que ele me dissesse que a culpa tinha sido do árbitro.
- Como assim? O que se passou?
- Perdi a cabeça. Estou cansado, estava farto de levar pancada e de ouvir bocas. Não me consegui controlar.

Ele senta-se no sofá e eu vou ao seu encontro.
- Tu não és assim, André. As bocas fazem parte, a porrada também. De certeza que estás bem? Não jogaste com dores?

André olha, finalmente, para mim com aquele olhar que denuncia que as minhas suposições estão certas.

- Não acredito...
Retorno à cozinha, tiro gelo do congelador e ponho-o num saco.

Volto rapidamente.
- Toma.
Ele aceita e encosta-se no sofá. André sobe a camisola e vejo que toda a sua barriga está negra.
- André... - suspiro o seu nome e o meu coração aperta de preocupação.
André leva o gelo à barriga. O contacto faz com que ele gema um pouco com a dor.
Sento-me na mesa e fico de frente para ele.
- Como é que foste jogar hoje?
- Isto não é nada, Luísa. Eu tinha de jogar.
Não consigo explicar, mas cresce em mim uma fúria. Só me apetece bater em quem o autorizou a ir. Mas tento não o demonstrar.
- Deixa-me adivinhar: durante o jogo fartaram-se de te dar mocadas aí e no pé onde te aleijaste, não?
Ele apenas acena e eu levanto-me de rompante.
- Mas para quê?! Como se não houvesse outros laterais direitos no plantel! Que parvoíce é esta?! O treinador não sabe que ao colocar-te assim em campo apenas torna a tua posição ainda mais frágil?! Isso é um convite para os tipos da outra equipa darem cabo de ti e anularem o lateral direito!
- Luísa...
- O quê?! Estou a dizer alguma mentira???? Não me digas que foste tu que pediste para jogar...
- Eu achava que estava bem. Não a cem por cento, mas estava bem.
- Não os desculpes, André!
- Estou a falar a sério.

Volto para ao pé dele e olho-o profundamente. E agora só me apetece bater-lhe.
- Não sei quem é pior. Tu ou eles.
Ele apenas fecha os olhos.
- O que é que precisas? Tu tens de pôr aí algo, tomar algo. O que te deram?

Só agora reparo que o André não trouxe nada. O que é que posso fazer?
- Deixei no carro lá em baixo...
Suspiro.
- Dá-me a chave. Eu vou lá buscar.

- Acho que estes são agora...
André está com uma cara de dor que não me lembro de ver. Dou-lhe os comprimidos que ele indica.
- Tens a certeza de que não é melhor algum médico te ver?
- Já viu, Luísa. Eu é que ainda não tomei nada.

Estou a ponto de explodir. Só me apetece bater-lhe, porque raio é que ele se deixa ficar assim com dores?

Porém, nada digo. Apenas vou buscar água para que ele possa tomar os comprimidos.

- Não fiques chateada comigo. Estava quente do jogo. Só quando me meti no carro senti as minhas dores.
Dou-lhe o copo de água e suspiro.
- E cuidares de ti primeiro, não? Do género, fazeres logo o que o médico te disse?
- Estás chateada por ter vindo aqui?
- Não, André! Estou chateada por estares assim! Magoado, com dores!
Rebento.

Falo mais alto do que devia, mas não consigo evitar. Preparada para que ele me responda na mesma moeda, apenas vejo um sorriso no seu rosto. O que me desarma completamente. 
- Porque raio te estás a rir?

Estava pronta para o combate, para lhe fazer ver que a decisão dele foi errada e que não: não está tudo bem. Mas com aquele leve sorriso, nada posso fazer.

- Nada... Não é por nada... - ele toma os comprimidos e eu fico sem saber o que lhe dizer. Estará ele a gozar comigo? - É só porque... Não fazia ideia de que eras capaz de ficar assim...
- Ah? Assim como? Dizer-te que tudo isto podia ter sido evitado se tu não achasses que és o super-homem?!
Ele ri-se novamente e, agora, já só estou a achar tudo irritante.
- Calma... Super-homem, não. Ainda se fosse o Batman... Acho mais graça.

Aquela sua atitude tira-me do sério.
- Sabes que mais? Esquece! Não sei porque me estou a chatear com isto! Evidentemente, tu achas que está tudo bem, para ti é tudo uma brincadeira e eu estou aqui preocupada à toa!
Faço menção de me levantar.

- Não acho que seja tudo uma brincadeira.
A sua voz sai mais grave do que o habitual.

Paro e permaneço sentada à sua frente.

- Eu sei agora que fiz mal. Por isso também estou chateado. Estou nesta situação desnecessariamente, tens razão.
- Então porque te ris?!
- Não me estou a rir da situação, Luísa. É só porque... Tens uma maneira própria de te mostrares preocupada por mim, é só isso. Normalmente, qualquer uma ia ficar ao meu lado, dizer-me o que quero ouvir, fazer tudo por mim, corresponder a tudo o que lhe pedisse. Mas tu não. Tu queres bater em toda a gente porque me magoaram. Em último também me queres bater porque fui... fui inconsequente.

Agora sim.
Agora calou-me.

André encosta-se no sofá e tira o gelo da barriga.
- Dá-me a minha mochila.

Prontamente, dou-lhe a mochila que trouxe quando fui ao carro. Ele abre-a e tira de lá um saco verde.
- Tens mais gelo? Preciso de pôr algum no pé, entretanto isto poderia ficar no teu congelador?
Pego no que ele me dá e levanto-me.
- Claro.

Rapidamente, faço o que ele me pede. Terei sido demasiado dura? Eu não sei ser de outra forma. A maneira que tenho de demonstrar como quero proteger aqueles que amo pode ser intensa. Mas, eu sou assim. Barafusto, mas não é contra ele. É contra a situação.

A Vida em LivroOnde histórias criam vida. Descubra agora