Teria aquilo tudo realmente acontecido? Deitados na cama de N., ela me abraçando, sua perna por cima das minhas, os olhos pequenos me encarando. Tão enigmáticos, olhos de cigana. Oblíquos porque nada se via além deles, dissimulados porque sempre mostravam uma história diferente. A estrela cadente que cortou o céu, os pisca-piscas, o colchão no chão. Como foi que chegamos ali? Só lembro que estávamos deitados e, naquele momentos, tinha em meus braços a verdadeira N.. Aquela que, com apenas um metro e meio, posava mais alta do que todos. Já não me lembro bem da história, é verdade.
Escrevo agora porque estive recentemente naquele prédio em que morávamos. Ela dois andares acima do meu, apartamento 3C. Ou será que era o 3B? Tantos anos. N. sentada na bancada, fumando um Marlboro azul. N. deitada no colchão sem cama, me dizendo que eram poucos os que tinham o direito de entrar naquele quarto. Flat de um quarto só, igual ao meu, no mesmo prédio. Eram todos iguais, mas tão diferente o dela! Poemas escritos em uma parede, post-its com mensagens e histórias na outra. Quanto tempo o meu ficou ali? Também não me lembro o que estava escrito.
Fora mais uma daquelas noites que eu passei no apartamento dela, tantas. Ela e o colega de quarto -- que, na verdade, dormia na sala -- recebiam muitas pessoas, mas eu era membro frequente naquela época. Era maio, isso eu me lembro bem. Já começava a fazer frio. Um vento gelado vinha da varanda do quarto, a porta aberta para jogar as cinzas do meu Marlboro branco. Noites em que víamos filmes, noites em que fumávamos, noites em que bebíamos. O colega contando histórias sem graça. Eu contando piadas que só N. ria e me abraçava. Eu nem percebia o que estava acontecendo.
Precisaram me falar. Você sabe que ela quer, né?, diziam. Suspeitava, mas não queria acreditar. N. tão inalcançável, tão distante. Antes de qualquer coisa acontecer, já havia criado um roteiro em minha cabeça. Nunca seguido. Ela era hermética, impossível de prever. Tanto, que o interesse me pegou de surpresa. Naquela noite da estrela cadente, me perguntou se eu imaginava estar deitado com ela daquele jeito. Nunca, respondi sincero. Sincero? Sim, imaginava, mas apenas em um daqueles desejos que nunca se tornariam realidade, como o que eu fiz para o cometa.
A própria me revelou o interesse, certa vez no meu flat. Disse que todo ano ficava com um calouro na festa do Dia de São Patrício. Fiquei sem palavras, ainda hoje não consigo pensar no que poderia ter respondido. O dia chegou, lugar cheio, ela longe de minha vista, como sempre. De repente, apareceu. Estava elétrica, as pupilas dilatadas. Experimentou uma droga nova, tinha medo, mas não aparentava. Disse que aceitou sem pensar antes, apenas foi. Eu queria ser espontânea! Eu não, já tinha medo do que poderia acontecer.
Ela precisou me convencer. Mandou mensagem, disse que estava triste e queria companhia. Percebi a armadilha, recusei. Nosso primeiro beijo fora há uma semana, quando ela desligou a luz do quarto e ligou os pisca-piscas atrás da cômoda. Percebi o que ia acontecer, mas travei. Tinha medo, é verdade. Por que tinha medo? Não sei. Depois descobri que não era o único frequentando aquele quarto, talvez por isso. Antecipação. Mas ela se aproximou, entrelaçou meu braço no dela, ficou a me olhar. Juntamos os lábios instintivamente. Consumado o beijo, ri. Não foi uma gargalhada, mas acho que a língua portuguesa não possui a palavra que quero. I chuckled. Ela não entendeu, eu também não -- ainda não entendo. Mas, daquela vez, não passei a noite ali.
Uma semana depois, passei. Ali, ambos deitados, éramos o mesmo. Sei disso porque depois a elogiei, e ela disse: acha mesmo? Que surpresa! Era tudo uma pose, então? Boa parte, acredito. Juntos na cama, juntos em insegurança. Durante aquele breve momento em que desafiamos a lei da impenetrabilidade, éramos um só em corpo e alma. Mas não dei continuidade, não me sentia bem. Pedi para parar. Cansou, fumantezinho? Concordei, para não ter que me explicar. Mas, agora explico: ainda tinha medo, aquela era a barreira que eu prometera a mim mesmo não passar. Sou de peixes, afinal. Era isso que ela sempre dizia: peixes, o signo de água, signo dos sonhadores. O mesmo signo de D., mas agora ele namorava com F..
Tantas letras! Eu sei, também me confundia. Não com os nomes, com as pessoas. Qual era o meu papel ali? O meio entre D. e R.? Esse último eu já sabia que andava deitando naquele mesmo colchão, antes mesmo dela confessar. Não confessou nada, me mostrou. Chamou meu nome enquanto íamos embora de uma festa, mostrando que ela ficaria mais um tempo, com ele. Não disse nada além de chamar meu nome, e eu também nada falei. Espero que agora o leitor já consiga entender meus receios. Acho que não sou um homem desse tempo, não entendo o poliamor. Será que posso falar de amor nesta história?
Depois, quase um mês depois, novamente nos encontramos em uma festa. Chácara, lugar distante e frio. Frio de árvore é perigoso, minha mãe já dizia. Ali, sob a luz do luar, elas eram imponentes e impenetráveis. Assim como N.. Sentou-se ao meu lado, de repente. Não me lembro o que conversamos, bebi muito naquela noite, a sobriedade não era a via certa para lidar com aquela presença. Mas o papo terminou em astrologia, disso me lembro. Não tenho nenhum planeta de água no meu mapa, ela disse. Por isso que você é assim, respondi e saí. Não a vi mais naquela noite, provavelmente estava com R.
Aquela noite, quando ela foi ao banheiro e fiquei deitado a olhar as estrelas pela porta aberta da varanda, vi o meteoro cortar o céu. Quando retornou, contei o que havia acontecido, e ela me perguntou o que fora meu desejo. Não contei, e também não vou contar agora. Este segredo levarei para a cova. Ela também tinha segredos: afinal o que estava D. fazendo no flat aquela vez que bati à porta e ele atendeu? Ele estava de saída, ela parecia triste. Peixes, o signo dos românticos. Mas, esse eu não quis levar adiante. Outras noites ela me enviou mensagem, todas eu recusei. Algumas eu fui bronco, admito. Depois ela me dizia que a fizera chorar e meu peito se abria em um abismo. Me escrever até poemas naquela época.
Como pode um peixe vivo viver fora da água fria? Começo clichê, mas todos os bons poemas são. Ainda mantive o contato por um tempo. Viamos filmes, viamos séries, conversávamos sobre as coisas que ela escrevia. Uma vez ela me perguntou se eu queria ir com ela até São Paulo, recusei. Recusei tantas coisas, não me arrependo. Me arrependo de dizer que odiava a banda favorita dela, o poeta favorito dela. Comecei a odiar muitas coisas sobre ela, até chegar a odiar ela mesma. Chegou uma manhã em que a convidei para conversarmos no terraço do prédio. Falei a verdade: não a entendia, não estava satisfeito, não queria mais nada. Ato corajoso, falar a verdade naquela história toda. Será que ela dizia a verdade quando contava que chorava por minha causa? N. nada falava, apenas concordava. Usava um óculos escuro, não conseguia ver seus olhos e não conseguia entender o que ela pensava. Também não conseguia entender quando ela estava sem óculos, é verdade.
Desde então, não nos falamos mais. Mudei de cidade pouco tempo depois, perdemos o contato. Há pouco estive naquele mesmo apartamento, agora vazio. Precisei fingir que estava interessado em alugá-lo, mas dentro do prédio não pude fingir tão bem. Quando passei pela garagem, fiquei procurando o carro de N. entre todos os outros, mesmo sabendo que não encontraria. Ainda tenho seu número, mas nunca tive coragem de mandar uma mensagem, pedir desculpas. Acho que é em busca disto que escrevo: perdão. Falei para ela coisas que me faltam coragem para escrever aqui. Preciso mostrar que estou arrependido. Mas, é verdade, precisaria convencê-la.