A Ocupação ou Saído das Trevas

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Faltava uma hora e treze minutos para o meu celular, que funciona melhor como despertador, começar a vibrar e tocar "The Power of Love" do Huey Lewis and The News, ou seja, eram ainda 5:47 quando a quantidade irlandesa de cerveja que havia tomado na tarde e começo da noite anterior me chamou, novamente, à tradicional mijada para a qual nunca queremos levantar. Foi dessa vez em que, eu lá, curtindo o alívio tanto pela sensação, quanto pelo som imponente do jato em contato com a água da patente, virei-me para dar o costumeiro sorriso olhando nos meus próprios olhos pelo espelho e percebi que lá estava ele. Meu cu tinha ido parar na minha testa.

Como os lábios da Xuxa mandando "beijinho-beijinho, tchau-tchau", ele ainda teve a audácia de piscar e soltar silenciosamente um ar quente acompanhado de um odor amaldiçoado pelo demônio em pessoa.

Credo. Senti como se ele estivesse zoando da minha cara ou contando alguma espécie de vitória. Sei lá. Só sabia que era meu o próprio cu que havia mudado de lugar. Primeiro porque conheço o meu (quem nunca teve curiosidade de espiar o seu próprio usando qualquer tipo de reflexo ou tirando uma foto? - Eu conheço uma pessoa, inclusive, que faz selfie do seu buraco negro toda vez que vai sair com alguém só para ver se está apresentável, mas enfim...) , e segundo que, no desespero, peguei um daqueles espelhinhos de moldura laranja que geralmente uso para me livrar dos pelos no chuveiro, o coloquei no chão e me agachei de cócoras. O cabelo que outrora circulava o anel de couro, agora só formava uma pequena clareira em volta da pele franzida indicando que um cu vivera ali.

Não podia ser mais inoportuno. Dentro de poucas horas eu deveria encarar alguém, com o raro poder de me empregar numa entrevista, correndo o risco de peidar ou cagar na cara da cidadã, ou do cidadão.

Era um sonho. Só pensei que poderia estar sonhando com toda aquela cerveja ingerida. Mas não. Se para o cara do Kafka que acordou inseto voltar a dormir não deu certo, para mim não daria. De fato, o meu brioco havia cansado de viver nas sombras e queria ver o sol nascer.

Inicialmente a solidão de tal situação se fortalecia na busca do que fazer para revertê-la. Não tinha ninguém a quem pudesse contar que fosse acreditar a menos que esfregasse o cu na cara da pessoa. Obviamente, tem um monte de gente, tanto para o bem quanto para o mal, que eu ia adorar fazer isso - os nomes chegam a brincar de patins perigosamente na ponta da minha língua igual ao Chaplin em Tempos Modernos -, porém, não era um caso nem outro. Na época as pessoas viviam com seus smartphones engatilhados, só esperando alguma coisa fora do corriqueiro acontecer para registrar, compartilhar e, dependendo do grau de "fora do corriqueiro", até viralizar. Com um cu na cara eu não confiaria contar para a minha própria mãe mesmo que eu fosse Jesus, e nem no médico dos médicos, se ele fosse o próprio Jesus. Porque, pensando bem em "o que Jesus faria?", compartilhar algo assim o tornaria mais popular que os Beatles, logo ele seria a personalidade do ano e quem sabe eleito a presidente. Quanto a mim, depois de exposto e humilhado mundialmente passaria o resto dos meus dias como cobaia de laboratório recebendo toda espécie de objetos sendo enfiados na minha testa.

"PAM, pam pam, pam pam, pam pam...

The power of love is a curious thing..."

Já era 7hs e eu estava com todas as cortinas do apê fechadas e meu laptop no colo e uma fita adesiva sob a lente da webcam, temendo que estivesse sendo espionado por um agente da CIA, um hacker, ou um agente da CIA hacker. Queria analisar o tutorial ao qual havia confiado na noite anterior a abertura do meu terceiro olho. Acreditava que tal façanha me deixaria mais iluminado e assim mais preparado para ser aprovado na seleção de emprego, no entanto, foi interessante constatar a diversidade de vídeos pelos quais a reprodução automática do YouTube levou minha meditação. Tinha vídeo de como esticar a pele do rosto para parecer mais jovem; de como trocar um chuveiro elétrico sem morrer eletrocutado; um vídeo de como Hollywood e a música pop vem anunciando a Ursal e o Anticristo; como evitar broxada e ejaculação precoce aumentando o tamanho do pênis; um deles prometia ser a "PROVA DEFINITIVA de que a TERRA É PLANA"; um vídeo de melhores momentos do Programa do Ratinho; outro vídeo era uma pregação sobre prosperidade e cura financeira do Marco Feliciano; haviam mais tutorias de alisamento e coloração do cabelo. Porém, curioso de fato, foi não encontrar nenhum vídeo que ensinasse a abrir o terceiro olho. Procurei em todo o histórico e o primeiro vídeo a ser exibido foi "O MELHOR DO FORRÓ: 1 hora de Calcinha Preta". Simplesmente não estava lá, mas eu tinha certeza de que fiz a busca, encontrei o vídeo que me parecia o mais "top", me acomodei, cliquei no PLAY e fui seguindo às instruções até meu provável apagão. Era isso o que tinha em minha mente como 'a lembrança da noite anterior'.

A Ocupação ou Saído das TrevasWhere stories live. Discover now