Varanda

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Estava no décimo andar de um prédio abandonado, ele estava em vias de ser demolido para começar a construção de um novo shopping na região. Não estava instável, nem nada assim, o prédio há um tempo atrás costumava ser uma faculdade particular, e eu estudei ali.

Eram muitas lembranças, e eu não podia nem sequer estar ali, invadi, passei por andaimes, driblei os seguranças noturnos e agora estou aqui, esperado um amigo meu daquela época, dos bons e velhos tempos. Lembro da primeira vez em que estive aqui olhando para essa vista. A primeira impressão que eu tive. Tinha 18 anos, era apenas uma jovem sonhadora, idealista, caloura do curso de artes visuais. A paisagem da cidade cresceu sobre mim de forma ameaçadora, os arranha-céus cinza enormes, e ainda assim ali estava eu, olhando-os de igual para igual. Se duvidar, o prédio da faculdade era maior. A minha visão se estendeu para além e eu vi a cidade, as pessoas ao longe atravessando a rua, o entregador de bicicleta, carros buzinando, e algum cortador de grama ao longe.

Eu estudava de manha, e agora a atmosfera encontra-se completamente diferente daquela em que reside nas minhas lembranças. O sol já foi embora, o que me restou foi a noite, as luzes dos prédios comercias, o transito fluindo bem pois a essa hora todos já estão em suas casas. Voce só escuta certos barulhos dissonantes ao longe, o que me restou foram impressões. O escuro, soturno.

-Pensando em se jogar? – a voz vem das minhas costas e eu a reconheço muito bem.

-Luiz! – exclamo, atirando-me eu seus braços.

Ele me segura e me aconchega como costumava fazer, me encolho em seus ombros e sou novamente aquela menina, até que o momento se prolonga demais e eu não sei se devo larga-lo, ou continuar agarrada a ele. De toda forma me afasto, mantenho o controle, escondo as emoções despertadas e paro para encará-lo. Tao diferente, tao parecido com quem ele costumava ser. O sorriso no canto do rosto, os óculos tortos (que mania dele!), e as roupas despojadas. Aquele ar de tranquilidade, um suburbano pronto para ir à praia.

- Voce continua o mesmo. – digo, no meio de um sorriso nostálgico.

- Que nada, tudo flui. Olhe só para você. –Aponta em minha direção e eu fico sem reação.

Paro para olhar para mim mesma e sim, eu mudei. Cortei o cabelo nas orelhas, agora ele está um cacheado cheio naquele estilo anos 1920 que eu tanto amo, me acostumei a usar vestidos, estou de meia arrastão, enfim, foi um pesadelo passar pelos andaimes, e aqui estou eu novamente, defronte para o meu primeiro amor, e a questão é que sempre quando eu o vejo, tudo volta como uma avalanche, fico desnorteada. Mas esse não é o fato principal, estamos aqui para fechar um ciclo, nos despedirmos de vez. A derrubada desse prédio será, de forma simbólica, como a derrubada de nossos passados.

Tento nos trazer de volta, cortar o clima.

- Voce se lembra? As pessoas vinham mesmo aqui para se jogar, era um percentual muito elevado de suicídio. Essa vista tem uma magnetismo enorme... se você não estiver com os sentimentos certos, a coisa toda pode virar contra você.

- É claro que eu me lembro, como poderia esquecer? E estando aqui novamente, sinto aquela vertigem toda outra vez. Foi aqui que eu te conheci.

- Não me olhe com esse ar interrogativo, sugestivo. Odeio quando você faz isso.

Ele ri, acha graça do meu embaraço ante certas lembranças.

- Voce ainda fuma, afinal? Ou continua com esse aspecto de filósofo pós-moderno que só raciocina enquanto fuma, aquela maldita fumaça, eu não suportava, sabe?

-Sei.. todo aquele papo sobre ser saudável, enchia meu saco. –Ele ri, sacode a cabeça, passa as mãos nos cabelos e me encara de novo- Não sei como eu te aguentei por tanto tempo, mas você era tao alto astral, tao diferente de mim. Enquanto os outros vinham aqui para se matar, você vinha encher os pulmões de ar. Nunca me esqueci do que você me disse quando falei com você pela primeira vez, que você estava comtemplando a vida, ouvido a sinfonia das ruas, se inspirando...

- Sim, e eu ainda consigo escutar, mesmo aqui e agora.

Me aproximo dele, meu coração batendo rápido, coloco a mao na direção de seu coração, batimentos normais, tao frios. Estou nervosa. Fazia cinco anos que não nos víamos. Há dois anos que a faculdade faliu. Conseguimos nos formar, pelo menos, veja bem. Ele parece entender minha linguagem muda, corporal, segura minhas mao sobre a dele.

- Olhe para a vista, além dela. Consegue nos ver, como erámos?

- Sim – e nesse momento lágrimas correm, passa uma brisa tranquila, bruxuleante.

- Nunca é um adeus, né?

- Nunca, nós ainda estamos aqui.

- Mas e o futuro?

- Quem é que sabe?

- Talvez ele desabe amanha.

- Ou talvez ele renasça, vamos ver o sol nascer?

E no dia seguinte somos despertados com a luz do sol, a varanda toda transparente permite uma visão privilegiada da cidade, mesmo estando no chão, acordamos lentamente. Vemos o sol subir, aqueles instantes, rápidos, mudos, parecendo se estender além do normal. Nenhum dos dois disse nada, não precisávamos dizer. Era uma questão de vivenciar, absorver, e deixar tudo ir embora. Até que acontece uma espécie de movimentação e uma voz grita:

- Hey, quem são vocês!? O que estão fazendo aqui? Essa área tem acesso proibido!

Olhamos um para a cara do outro, damos as mãos e eu falo:

-Corre! – saímos em disparada na direção de um atalhos que poucas pessoas conheciam, você tinha que ter tido a vivencia necessária para saber disso sobre o prédio, descemos as escadas de incêndio correndo, o segurança tenta em vao embasbacado nos seguir. Corremos rindo, e quando conseguimos sair do prédio, o sol já tinha nascido. 

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⏰ Last updated: Sep 21, 2019 ⏰

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