Desde a janela do ônibus eu já conseguia vê-la, e não existia palavra que descrevesse melhor aquele sentimento do que "nostalgia".
Desci do ônibus e, só então, comecei a sentir o frio que fazia naquela noite, mas a julgar pelas minhas mãos, que mais pareciam 2 cubos de gelo, talvez todo aquele frio não tenha vindo apenas da noite em si.
Tirei a chave do envelope no qual ela foi entregue a mim e casualmente caminhei em direção à porta. Pensei que talvez fosse mais fácil passar por tudo isto se eu fizesse pouco caso de minha situação. Após 5 anos vivendo com os meus avós, finalmente estou de volta. De volta à casa que uma vez foi dos meus pais. Em frente a uma casa que eu posso chamar de minha e de mais ninguém.
Destranco a porta com um único giro na feichadura. Coloco uma das mãos na maçaneta e a outra sobre o seu acabamento de madeira escurecido pelo tempo, como se eu estivesse tentando sentir o seu coração, mas o que acabo sentindo é a poeira entre os meus dedos e logo sou lembrado de toda a limpeza que terá de ser feita. Após todos esses anos, a poeira deve ter acumulado a sua própria poeira. Empurro a porta e, como quem liga o chuveiro de uma vez para encarar um banho gelado, com o mesmo impulso, adentrei a casa.
Por estar de olhos fechados, a primeira coisa que sinto é o cheiro. Em minha infância, lembro que todos os dias a casa era banhada por uma grande sorte de aromas diferentes. O cheiro dos vários tipos de madeira que minha mãe trazia do trabalho; O aroma vindo da cozinha onde meu pai tentava todos os dias produzir um prato diferente; O fedor de cachorro molhado que o Nick, mesmo quando enxuto, espalhava pela casa. Todos esses cheiros me lembravam de casa. É obvio que todos eles foram extinguidos pelo tempo, mas essa logica não me impediu de tentar busca-los, respirando fundo ao entrar, mas o cheiro com que fui recebido, de tão inesperado, me fez interromper a respiração no meio do caminho. Não era o cheiro de lenha recém cortada ou o aroma que só um bolo de aniversario pode proporcionar, e muito menos o fedor que só os donos de um cachorro conseguem suportar. Como também não era o cheiro de poeira que qualquer pessoa sensata poderia esperar. Acetona. Não faz sentido que um cheio como este venha de uma casa abandonada por tanto tempo. Abri os meus olhos e dizer que o que vi foi inesperado é um eufemismo.
–AAH! – Me assusto e a minha primeira reação é assumir uma postura de luta, ou pelo menos era está intenção ao colocar minhas mãos de punhos cerrados em frente ao meu rosto. Encima do terceiro degrau da escada que dá para o meu antigo quarto, sentava uma estranha olhando para baixo enquanto pintava as unhas dos pés. Ela agora olhava para mim com uma expressão assustada e com uma das mãos sobre a boca, como em uma tentativa de abafar o próprio grito.
Depois de alguns segundos nos encarando, ela respirou fundo e assumiu uma expressão tranquila, uma que simplesmente não se encaixava com a nossa situação.
– Cara, não me assusta assim – Ela disse enquanto voltava a pintar suas unhas.
Levei um tempo para processar o que estava acontecendo. Havia uma desconhecida na casa dos meus pais, e ela agia tão casualmente que, por um instante, me fez pensar se não era eu o invasor.
– Quem é você e o que está fazendo aqui? – Eu perguntei. Ela voltou a olhar para mim, dessa vez assumindo uma expressão tão confusa que beirava o exagero.
– Como assim quem sou eu? – Disse a estranha com uma voz que transbordava angustia – Clarinha, cara, Clarinha! – Falou enquanto batia em seu próprio peito.
Clarinha. Diminutivo de Clara, talvez Claudete, ou um apelido por conta da cor de sua pele que, mesmo naquele ambiente pouco iluminado, pude notar que era uma das mais claras que eu já vi. Começo a me sentir mal por não conseguir lembrar do seu rosto. Seus olhos, que brilhavam com lagrimas, se destacavam por serem a parte mais escura do seu rosto. Suas sobrancelhas, que agora se esforçavam pra ficar o mais próximo possível uma da outra, eram tão alvas quanto o cabelo loiro que descia até a sua cintura, tão bagunçado a ponto de me fazer questionar se ela havia acabado de acordar, o que provavelmente deve ter sido o caso sendo que ela vestia o que parecia ser um pijama. Ela não parecia alguém que fosse fácil de esquecer e muito menos com um parente distante.
– Desculpa – Eu disse de forma constrangida – mas eu realmente não lembro de você.
– Ooh... sério? – Disse Clarinha enquanto colocava uma das mãos no queixo de maneira pensativa.
– Sim, não lembro de já ter conhecido alguém como você.
– Então acho que não me conheça mesmo. – Ela disse com um dar de ombros enquanto me lançava a expressão de alguém perdido, apertando os lábios e franzindo a sua testa.
Depois disto, voltamos ao cenário anterior: Ela pintando as unhas enquanto eu, estupefato, a observava. Uma desconhecida que me fez fazer papel de bobo em minha própria casa.
–Vou chamar a polícia – Eu disse enquanto desbloqueava o celular.
–Hum? – E pela terceira vez ela olhou para mim, como se já houvesse esquecido da minha existência – Não! Calma aí mano, se você não quer que eu fique, eu saio.
E com isto, ela levantou, sacudiu a poeira das suas calças de dormir e caminhou até porta. Fui para o lado, dando espaço para ela passar. Só agora que levantou, consigo ver o quão alta ela é, mesmo embora eu tenha certeza de que é bem mais nova do que eu. A sua altura ficou ainda mais clara quando parou em minha frente.
–Pera, você ia ligar para a polícia por minha causa, não é? – Ela disse apontando para si mesma.
– E de quem mais séria? – Perguntei exasperado enquanto levantava os braços.
– Só checando, minha irmã sempre me diz para evitar mal-entendidos.
– Diz a ela que eu mandei um abraço.
–Tá dando em cima de minha irmã?
–Mas eu nem conheço ela
–Como assim? Minha irmã, cara, minha irmã.
–Saia da minha casa agora! – "Minha casa". Depois de todos esses anos, não imaginei que este seria o contexto em que utilizaria essas palavras pela primeira vez.
–Tá, ok, entendi – disse Clarinha arquejando e revirando os olhos. Pensei ter exagerado ao gritar, mas isto parece não ter causado nenhum efeito nela, que passou bocejando pela porta.
No momento, meu desejo era o de bater a porta e me focar no motivo de eu ter saído da cama naquele dia, mas a estranha caminhando pelas calçadas escuras de Cambridge, por três motivos, ainda chamava a minha atenção. Fiquei surpreso com o quão forte ela conseguia assobiar o que parecia o refrão de Submarino Amarelo dos Beatles; apreensivo com cada passo que os seus pés descalços davam naquele chão sujo e pavimentado; e aterrorizado notar que ela caminhava em direção à casa ao lado da minha, e essa foi o primeira vez que desejei que alguém estivesse invadindo algo que não nunca poderá chamar de seu.
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A Casa dos Meus Pais
RomanceE se um dia você recebesse a chave para uma nova vida? E se você pudesse deixar para trás uma fase de sua vida e fingir que tudo não passou de um sonho? Gustavo, um universitário de 20 anos, ganhou essa oportunidade, mas com o tempo, acaba descobrin...