Preciso contar uma história que vem me perseguindo há algum tempo. Surgiu de repente, em uma conversa entre amigos, e desde então me encontro cercado por ela. Precisei trocar os nomes, por motivos óbvios, mas por ironia do destino, os dois personagens envolvidos compartilham do mesmo nome. Aqui, chamarei-os de Lucas. Como seria muito confuso para o leitor saber a qual Lucas estou me referindo, um deles tratarei apenas por L. Lucas e L., uma história tão improvável quanto esta coincidência. Será mesmo tão improvável? Não posso confirmar, tudo o que sei foi o que me contaram, e também será tudo o que o leitor lerá aqui. Que fique claro, no entanto, que os relatos são completamente verídicos. Basta que confies em mim, leitor.
Começou no dia que dei carona para Lucas, depois da faculdade. Estudamos todos na mesma universidade, e como ela não é tão grande assim, é fácil criar amigos em comum. Pois bem, Lucas cursa Direito, o mesmo curso de meu irmão -- cujo nome não vem ao caso. Os dois são bem próximos, amigos desde o primeiro período. Eu, por outro lado, era mais próximo de L., pois ele era meu veterano. Estou dizendo isto apenas para situar o leitor, porque a história quem irá contar são os Lucas. Enfim, estávamos no carro, eu ao volante e meu irmão ao meu lado, Lucas no banco de trás.
-- João, você conhece o L.? -- João é meu nome, esqueci de mencionar. -- Ele é do seu curso.
-- Sim, por que?
-- Nossa, esse menino é doido! Não, sério! -- Lucas era muito enérgico, eu poderia colocar uma exclamação no final de cada frase dele. -- Ele não sai do meu pé, e eu já deixei claro que não quero mais. Eu eim, tipo assim... eu já falei pra vocês que eu tava ficando com ele? Não? Pois é, a gente já se conhecia e tal, mas nunca tinha conversado de verdade, aí um dia a gente marcou de ir numa festa. Que lugar horrível, sério! -- Risada. -- Mas eu não tinha nada pra fazer, né, e ele me chamou. Foi na Veneza, vocês conhecem? É uma boatezinha ali perto da faculdade, eu também não conhecia. Aí tá, fui lá, me arrumei... cheguei no lugar... decepção! Minúsculo, e um calor! Credo, gosto nem de lembrar. Encontrei ele lá, papo vai e papo vem, acabamos que ficamos a noite toda. Ele é muito bonito, mas beija estranho. -- Outra risada. -- Sei lá, parece que quer enfiar a língua na minha garganta, eu eim... enfim, a gente deve ter saído de lá umas cinco horas, tava quase pra amanhecer já. E ele me chamou pra ir na casa dele, acredita?! Mas não sou desses, né? Aí tá... -- Ele ia continuar, mas percebeu que já estávamos na esquina em que ele descia. Prometeu terminar a história depois, se despediu e desceu do carro. No caminho para casa, eu e meu irmão não conseguiamos parar de lembrar da história e rir dos trejeitos de Lucas.
Confesso que, depois, esqueci da história. Muitas coisas aconteciam ao mesmo tempo na minha vida, não havia tempo para me preocupar com os anseios de meus jovens amigos. Entretanto, a vida tem essa mania de colocar as coisas na nossa frente até que as percebemos. Não acredito em conspirações universais, forças divinas, mas estas coisas acontecem. Mas, volto a lembrar o leitor de que não estou inventando nada. Realmente, poucos dias depois, L. me encontrou em um bar e sentou-se ao meu lado. Em uma cidade com meio milhão de habitantes, quais eram as chances de nos encontrarmos? E, ainda assim, encontramos, e ele queria me falar sobre Lucas.
-- João, você conhece o Lucas? -- Não é possível, pensei. -- Ele é da mesma sala que o seu irmão... baixinho, loiro... -- fiz que sim com a cabeça, sem acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. L. suspirou antes de começar. -- A gente ficou, você sabia? Sério? Ele quem te contou? Então... ah, não sei se vou falar, então... -- Ao contrário de Lucas, L. era cheio das reticências, a voz ia sumindo antes mesmo de terminar a fala. Pedi para ele continuar. -- Então, cara... tipo assim, eu tava gostando mesmo dele, sabe? Ele te contou da festa que a gente ficou? Pois é, ele tava muito animado, disse que gostou muito do lugar, gostou muito de mim, do meu beijo... ele te contou essa parte? Não, deixa, não importa. Tipo assim, eu chamei ele pra dormir lá em casa, ele não topou, acho que forcei as coisas muito cedo... -- L. tomou um gole da bebida que estava em seu copo. Aquele homem tão alto, de repente se fez tão baixo. -- Mas parece que ele não ligou, porque me mandou mensagem no outro dia. Eu nem tava esperando, pra ser sincero, mas fiquei feliz. Então nós fomos conversando, sabe? Pra ser sincero... antes de ficar, a gente tinha se falado bem pouco. De repente, conversávamos todos os dias, até marcamos de sair outra vez. E dessa vez rolou, você sabe... -- L. tinha vergonha de falar dessas coisas. -- Então, cara... mas ele começou a ficar diferente. Acho que foi logo depois, não sei se fiz algo de errado. Começou a demorar pra responder minhas mensagens, parecia me evitar na faculdade, sabe? Eu encontro com ele na faculdade, ele diz que anda muito ocupado, e logo sai com os amigos dele. Sei lá, sei lá... você tá entediado, né? Vou parar.
Como prometi ao leitor que seria completamente sincero em meu relato, preciso admitir que estava mesmo. Como o próprio já deve ter percebido, o storytelling não era o forte de L.. A conversa acabou ali, falamos algumas coisas triviais e logo ele saiu. Mas esta história já estava plantada em mim, eu era agora parte dela. Comecei a me pegar pensando em Lucas e L. em momentos inesperados de minha vida, mas também não procurei ir atrás. Ainda não dava a devida importância e, para ser sincero, não sei porque agora dou. Senti vontade de compartilhar, mas já devo avisar ao leitor que o fim está próximo, e não é nada de extraordinário -- as coisas reais não costumam ser. Estou sendo sincero. Outra noite, outra carona para Lucas. Desta vez, sem meu irmão.
-- João do céu! O L. falou de mim pra você? Falou, né? Ele me disse que falou. -- Fui obrigado a admitir que sim. -- Nossa, que menino dramático! O que ele falou de mim? Não, deixa, não quero saber. Não quero saber de nada desse menino! Eu eim, deixei tão claro pra ele que não rolava sentimento, não sei pra que que ele foi se apaixonar. Tipo assim... ele ficava me seguindo na faculdade! Acredita? Aparecia do nada assim, no meio da roda com meus amigos, pedindo pra conversar comigo. E olha que a gente já tinha conversado o dia inteiro por mensagem, eim? Ai, não sei, você acha que eu devia bloquear ele? -- Balancei a cabeça negativamente. Diz pra ele sumir, falei. -- Nossa, eu acho que ele se mata se eu fizer isso. Menino melancólico, credo! Mas agora vou dar gelo nele por mensagem também, acho que ele vai entender o recado. Tá, chega dessa história. -- Risada. -- Diz aí, e a Paula? -- Não contarei quem é Paula. Não estou mentindo, apenas ocultando. Não é essa a história.
Precisei procurar L. para entender melhor. Agora sim, estava mergulhado até o pescoço nesse romance, beco sem saída. Me parecia importante escrevê-la, para que não ficasse apenas entre nós três, mesmo que fosse apenas mais uma de tantas que as pessoas vivem por aí. Veja bem, não é sempre que uma oportunidade dessas aparece na frente de um escritor, espero que você entenda, caro leitor. Encontrei L. em um corredor do nosso bloco na faculdade. Curvado como estava, era quase do meu tamanho. Contei-lhe a história, ele ficou injuriado.
-- Ele é um mentiroso! Ele disse isso mesmo? Que deixou claro que não rolava sentimento? -- Um riso de indignação. Nunca antes eu vira L. assim. -- Pois sabe o que ele me disse antes de começar a me ignorar? Que eu era diferente, que nunca tinha conhecido ninguém assim, que não podia deixar essa joia escapar. Sim, nessas palavras mesmo: não podia deixar essa joia escapar. Cara... sei lá, viu? Não importa mais, já desencanei, eu acho. Já sei por onde ele anda por aqui, vai ser fácil de evitar. Eu também nem tava gostando dele tanto assim, ele quem aumentou as coisas pra você. Cara... esquece essa história, vai?
Não esqueci. E, agora escrevo, para tentar encontrar uma verdade no meio. Sei apenas que agora Lucas e Lucas são dois estranhos. Nunca mais trocaram mensagens, nunca mais saíram juntos, nunca mais se cumprimentaram. Quando trombam um ao outro na faculdade, desviam os olhos. E, infelizmente, isto é tudo o que posso contar. Poderia inventar um final melhor, uma versão concisa da coisa toda. Seria mais fácil inclusive para mim, mas no entanto este relato perderia todo seu propósito. Quis contar uma história real, sem nada inventar, e infelizmente as histórias verdadeiras costumam serem assim.