UM

32 6 0
                                    

Não esqueço aquele dia. E como poderia? Foi o dia mais marcante da minha vida inteira. O céu estava nublado. O dia estava cinza. Quando cheguei naquele cemitério, eu estava num turbilhão de emoções. Não entendia mais nada. Minha família estava em peso naquele lugar. Lembro do abraço que uma das minhas primas me deu. Ela costumava sempre estar sorridente. Até hoje, não lembro de ter visto sorriso mais bonito. Mas não naquele dia. Não cabia sorriso ou felicidade a ninguém. Era só pesar. Tristeza. Quando ela me abraçava antes, eu lembro de me aconchegar, como num abraço de uma irmã mais velha. Só que eu ficava excitado também. Para um garoto de quinze anos, com hormônios a flor-da-pele, ser abraçado por uma mulher como ela era incrível. Mas de novo, não naquele dia. Eu não senti nada. Nem uma pontada sequer de qualquer emoção. Eu realmente não estava sentindo nada. Dois dias antes, eu estava em Mongaguá. Tinha ido até a praia de manhã depois do café da manhã. Quando voltei, encontrei meu padrasto falando ao telefone. Quando ele me olhou, disse para quem estava falando no telefone "Ele chegou. Vou falar com ele".
No começo, não acreditei. Achei que ele estava brincando. Ele costumava me pregar peças. Achei que fosse só mais uma. Mas não. Ele perguntou se eu queria descer para São Paulo para ir ao enterro. Eu disse que não. Não queria que me vissem chorando. Então, mais uma ligação. Uma comitiva do Motoclube que estava em Santos, viria me pegar, para descer para a capital. Mesmo assim eu não acreditei. Não podia ser real. Não tinha como.
Eu percebi que era real, quando a comitiva chegou. O presidente do Motoclube entrou e veio falar comigo. Eu peguei minhas coisas, e entrei no carro. Eu não sentia nada. Nem lembro da viagem. Não sei se paramos ou se descemos direto. Só me lembro de chegar na sede do Motoclube, e o presidente pedir para um membro de um Motoclube aliado, para me levar até em casa, e depois para a casa da minha madrasta. Quando cheguei na casa da minha madrasta, vi a primeira cena que me partiu o coração. Entrei e a vi, jogada na cama, com seu longo vestido azul, chorando. Meu coração se partiu. Mas não chorei. Não foi por não querer, ou por reprimir o choro. Eu só não chorei.
O corpo tinha atrasado. A funerária teve problemas. O corpo ficou três dias até ser encontrado. Mesmo com o caixão lacrado, o cheiro era fortíssimo. Quando íamos começar a subir o morro, eu percebi que só haviam homens subindo a extensa trilha até a sepultura com o caixão. Eu deveria estar lá.  À frente. Eu deveria estar lá. E eu fui. Assumi a frente. Era meu dever. E nós subimos até a cova. Quando chegamos, o caixão foi posto numa mesa improvisada. Algumas pessoas falaram. Acho que um padre recitou o pai-nosso.
E então o caixão foi abaixado para o fundo da cova. Quando começaram a jogar a terra, tudo veio de uma vez. Eu caí de joelhos na terra. Chorando muito. Meu peito e minha garganta doíam. A única coisa que consegui dizer foi "Adeus Pai".

VIDA CONTROVERSAOnde histórias criam vida. Descubra agora