Crianças da eternidade

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Gaia morre. 

Dia após dia, nosso pálido ponto azul morre. 

A humanidade? morre junto. Não moralmente, pois moralmente o homem jaz morto há muito tempo. Mas fisicamente. Diversas casualidades em detrimento das diversas calamidades, que afingem o mundo a cada hora.

Cientistas de todo mundo juntaram, então, suas forças na criação de um projeto bilionário, que pretendia salvar o planeta. 20% de toda a humanidade seria enviada, dentro de cápsulas espaciais, a um planetinha, a um outro pálido ponto azul, da galáxia de Andrômeda. Confirmado por astrobiologistas, o destino da viagem com certeza abrigaria a vida como a conhecemos. 

A ideia era tirar a sobrecarga do planeta. Se a quantidade de humanos respirando e poluindo a atmosfera fosse menor, o planeta conseguiria se recuperar e voltar a ser o que já foi algum dia. A sucessão ecológica com certeza salvaria o planeta ao longo dos anos..!

 Bom, pelo menos era o que a mídia dizia.  Mas os cientistas que idealizaram o projeto principal sabiam da verdade: a vida na Terra estava fadada a acabar. Levar os 20% até o novo planeta era apenas uma tentativa de assegurar que a espécie humana —assim como toda a História das civilizações, todos os seus feitos, toda a Ciência e toda a arte— não desaparecesse sem deixar vestígios. O Êxodo foi a única alternativa que as mentes mais brilhantes conseguiram pensar,  deixarem que mais de 30.000 anos de civilização e História desaparecessem, com a extinção humana, não era uma opção.  O anonimato, o breu, a insignificância cósmica... não podiam suportar, não estava em suas naturezas.

Mesmo sem saber a real motivação da migração, todos quiseram ir.  Afinal de contas, a Terra mal podia ser considerada como habitável. Sua atmosfera se tornara densa e mais densa, ficando cada vez mais parecida com o planeta Vênus. Ou com o Inferno, para quem não entende de astronomia. Calor ensandecedor, extinção coletiva de diversas espécies da fauna e flora, tempestades terríveis. Uma casa violenta, definitivamente a Terra não era um lar.

Depois de mutos conflitos para garantir sua vaga entre os 20% —filhos matando os pais, mães envenenando os filhos—, a viagem pode se concretizar. Dito e feito, chegaram ao novo planeta, apelidado de Substituunt.  

O que ninguém ninguém esperava é que Substituunt já era habitado... Se você pensou em alienígenas, acertou! Mas, não, não eram como os retratados pelo cinema americano, com grandes olhos e pele verde. Na verdade, os moradores locais eram bem semelhantes ao homo sapiens, com algumas pequenas peculiaridades como cores fantasia nos cabelos e a possibilidade de respirar em baixo da água. 

Após uma confusão inicial, as duas sociedades começaram a coexistir. No entanto, os humanos olhavam sempre com maus olhos e preconceito os nativos do planeta, que por sua vez faziam o mesmo com nossa espécie.  A única exceção a regra eram algumas crianças, as puras e jovens crianças, que interagiam amistosamente e com curiosidade, independente do planeta de origem de seus coleguinhas.

 Priya dy Deaglan era uma dessas crianças. Com pele morena, queimada pelo sol vermelho que iluminava Substituunt, e cabelos ciano, mais azuis do que os mares do Caribe já foram em um tempo longínquo. Era uma criança feliz e, apesar de ser nativa do novo planeta, nutria sentimentos por Augustus, um terráqueo recém chegado. 

Augustus era pálido, magro, com cabelos azeviche e um pouco de olheira, apesar da pouca idade. Era quieto, de poucas palavras, mas aquilo não o impediu de corresponder os sentimentos por Priya. Afinal de contas, os dois sequer falavam a mesma Língua, mas conseguiam se comunicar através de desenhos feitos na areia verde usando um pequeno graveto. 

As duas crianças eram muito amigas e se encontravam todos os dias, porém em segredo. Afinal, nem os pais de Priya nem muito menos os de Augustus permitiriam aqueles pequenos momentos dos dois. Não deveriam nem se aproximar um do outro! Eram de espécies diferentes, afinal de contas. Quem poderia saber o que o Outro seria capaz..?!

Ah, essa sempre foi a grande dúvida da humanidade

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Ah, essa sempre foi a grande dúvida da humanidade... O que o Outro pode fazer?

O Outro, o Diferente.

 O diferente sempre é temido. O medo mais primordial do Homem com certeza é o medo do que desconhecemos.  O mesmo continua absurdamente válido diante das relações pessoais. Os reis da Idade Moderna, por exemplo, sempre assassinaram todos que eram diferentes, pois tinham medo deles, medo que eles o fizessem perder o poder de suas mãos. Conserva-se no trono eliminando o plebeu que pensa diferente da Santa Doutrina Real. 

O casal de pombinhos intergaláticos, infelizmente, foi vítima dessa linha retrógrada de pensamento humano.

O pai de Augustus, que se chamava Cain, era robusto e possuia uma personalidade anacrônica e explosiva. Temia os nativos de Substituunt mais que tudo e manifestava todo esse sentimento em ódio e repulsa.  Por conspiração estratosférica do destino, ele, logo ele, cujo nome levava o peso do primeiro assassinato da História da humanidade, surpreendeu Priya e Augustus no pequeno esconderijo durante um inocente beijo.

Seu sangue ferveu. Como ato reflexo, puxou a arma que carregava sempre em sua cintura e apertou o gatilho contra Priya.

O mundo escureceu. As luzes do teatro foram apagadas, os instrumentos da orquestra pararam de soar. No recinto só restava uma poça carmesim que banhava uma jovem garota de cabelos magenta, outrora azuis como o mar...

O estopim, o ponta-pé final para que uma guerra começasse foi dado. Os nativos de Subtituunt não puderam aceitar tamanha afronta, assassinaram Augustus de forma ainda mais cruel do que Priya fora assassinada. O Líder Humano declarou guerra. Os Humanos possuíam tecnologia superior, com certeza poderiam tomar aquele planetinha só para si, não é mesmo..?

12 anos de incontáveis mortes se sucederam. Ao final deles, as duas civilizações caíram em ruínas, uma destruição mútua —como é da podre natureza humana sempre destruir o diferente, o que não entente.

Dessas duas civilizações mais se ouvirá falar. Mas Priya e Augustus, esses sim, continuarão a brincar juntos para sempre, felizes, na espiral da eternidade. 


Realmente humano  (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora