Aquele dia

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Gostaria de entender como minha vida chegou à esse ponto. Ver o exato momento que tudo saiu do eixo e começou a virar de cabeça para baixo, talvez assim eu saberia o que fazer, ou pelo menos teria me preparado para a que teria de enfrentar.

Em um passado onde minha vida era outra, eu com toda certeza adoraria a paisagem à minha volta. O outono sempre foi de meu agrado. As folhas ornam o chão e colorem a paisagem que rouba a minha atenção, muito embora a preocupação que me consome não deixa que eu aprecie a beleza do que me cerca.

Ande com cuidado, não faça muito barulho, não deixe rastros. Não há como ver beleza quando qualquer ato impensado pode significar minha vida. O belo quase deixou de existir, só não sumiu por completo por causa dela.

Suspiro prestando atenção em meus passos e onde eu piso, seguindo por um caminho a muito memorizado, carregando nada além de um velho arco e uma caça que dei sorte de encontrar e uma pistola com menos balas do que gostaria. Cervos estão cada vez mais raros por essa região e isso é preocupante. Se tem mais alguém caçando significa que estão mais perto e isso é péssimo.

Pessoas são mais assustadoras do que aquelas... Coisas. São imprevisíveis e voláteis demais, muito embora não queiram nos devorar ou infectar como os estaladores da região, ainda sim prefiro topar com um desses do que com outro ser humano.

“Você é cuidadoso demais, Guk”

Consigo vê-la dizer isso sem muita dificuldade o que me arranca um sorriso, no entanto minha breve felicidade dura pouco.

Um click vindo de não muito longe é o motivo. O inconfundível som que essas coisas fazem para se localizar. Eles não deveriam estar nessa região, há muito nós nos alojamos aqui e exterminamos a maior parte nos arredores. Os três estaladores estão vagando em círculos no meio do caminho, como se algo tivesse os atraído até lá. O som de estalo faz um arrepio percorrer minha espinha e não posso evitar olhar para sua fisionomia aterrorizante.

A infecção em estágio avançado faz com que o fungo ocupe o lugar de seus olhos e parte da cabeça, então eles parecem tudo, menos humanos. A faca pesa em meu cinto, mas prefiro pegar uma pedra e jogá-la no monte de folhas mais afastado, fazendo aquelas coisas correrem desesperadas até o som. Assim eu consigo passar com o cervo em segurança.

Não ia perder a caça que demorei horas para achar.

Sigo o caminho, alerta a qualquer som, temendo pelo pior como sempre. Contudo, dessa vez não foi um som que me assustou, mas sim uma flecha presa na árvore logo ao meu lado, a ponta vermelha me dava certeza de qual besta foi disparada.

Sora...

Aperto o passo e logo minha visão é tomada pela carnificina tão rotineira, mas que não desejava presenciar com tanta frequência. Homens encapuzados atravessados por uma saraivada de flechas com penas vermelhas se encontravam por quase todo o caminho, todos inertes com uma poça vermelha e viscosa sob seus corpos, buracos de balas atravessam as árvores, infectados em estágio inicial, corredores, estão em um deplorável estado, mais desfigurados do que os próprios saqueadores e há sangue em qualquer lugar que olho como em um terrível pesadelo que fede a metal e podridão. Resta apenas morte neste lugar.

O desespero me atinge e dessa vez não me preocupo com a caça em minhas mãos, o cervo cai aos meus pés e só não corro porque estaladores cercam o pequeno chalé. O lugar que por meses chamei de lar.

Dessa vez não hesito em pegar a faca de caça, não quando ela pode estar em perigo. Não posso deixar que nada aconteça com ela e apenas rezo para que ela esteja bem.

Tem que estar.

Tentando lutar com o meu coração acelerado eu mantenho a calma e me agacho. Sem pensar direito eu me aproximo, segurando qualquer mínimo som a faca pesa em meus dedos e logo ela encontra o pescoço do estalador que guarda a janela aberta. Ele emite um último estalo escandaloso e cai na grama com um baque surdo.

Eu tinha um pingo de esperança de que do lado de dentro seria mais seguro, mas essa esperança se esvaiu assim que vi a situação. Tudo estava revirado, fora do lugar, me entristece ver tudo o que construímos, tantos momentos bons, reduzidos à pó e meras lembranças. Conto com o fato de que ela tenha seguido o nosso plano e ido para o sótão.

O caminho até lá não foi fácil, os infectados se alimentavam dos saqueadores que conseguiram invadir e os outros avulsos rondavam por aí. Tive que liberar o caminho pela escada e minha faca foi útil nesse quesito, mas minha perna já doía pelo tempo que estou agachado.

Por favor Sora, me diz que você está aí em cima...

Acabo com o último deles, pelo menos do lado de dentro do chalé e enfim consigo uma brecha para abrir o alçapão que leva ao sótão. A cada degrau da escada que subo maior se torna o meu medo, não sei o que vou fazer se não encontrá-la ali.

Solto a respiração que nem fazia ideia que estava segurando quando noto a figura encolhida com uma besta em mãos em um péssimo estado. Seu cabelo estava sujo de sangue e desgrenhado, cortes em seu rosto e braço me preocupam, suas roupas estão sujas de terra e mais amassadas que o normal e os olhos assustados encontram os meus no lugar escuro quase que pedindo socorro.

— Graças à Deus Sora... — as palavras deixam minha boca e antes que ela se mexa eu já estou a abraçando, tentando não tocar em seus machucados. — Não sei o que faria se eu te perdesse.

Logo a besta sai de suas mãos e seus braços se apertam ao meu redor, percebo que ela chora quando suas lágrimas molham minha camisa, deixo que ela fique ali, se segurando a mim como se eu fosse um pilar que sustenta toda a sua estrutura, mas logo ela me empurra de forma brusca, quase caio sentado na madeira do piso.

Minha confusão só a fez se encolher mais ainda, enquanto nega com a cabeça e deixa a mão estendida para me afastar. Ela respira fundo e logo suas mãos começam a se mexer. Não demoro a compreender os sinais.

“Não se aproxime”

— O que aconteceu? Eles te tocaram? Se eles fizeram isso eu juro... — Ela nega antes que eu termine de ameaçar cada ancestral desses merdas.

“Eles mal encostaram em mim, não se preocupe”

Suas mãos se mexem rápido e é difícil acompanhar, mas no fim consigo entendê-la e me tranquilizo de alguma forma, bom, em parte.

Algo está muito errado.

— Sora... O que aconteceu? — pergunto novamente, vendo ela abaixar a cabeça e deixar mais uma lágrima cair. Devagar eu me aproximo, temendo que ela me afaste de novo, limpo sua lágrima e faço com que ela olhe para mim.

Seu olhar quebra meu coração. Espero que ela me diga o que está a atormentado, mas ela apenas tira a minha mão de seus rosto e seca as lágrimas que ainda caiam pela sua bochecha. Mais uma vez ela respira fundo, eu a conhecia como ninguém, sabia que estava enrolando para dizer o que aconteceu e quanto mais ela demora mais eu fico com medo.

Por fim ela olha em meus olhos mais uma vez e não diz nada, apenas afasta o casaco do ombro, deixando a mostra a mordida de um infectado, que não mais sangrava e já dava sinais de que aconteceu a algumas horas. Horas em que eu não estava com ela. E como se alguém tivesse me dado um tiro, senti como se meu mundo estivesse desmoronando.

“Sinto muito, Guk”

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