GUTO TINHA ACABADO DE ACORDAR COM A LUZ DO SOL ATINGINDO O SEU ROSTO. Ele e a namorada tinham passado a noite ali, na beira da estrada. Não conseguiram carona na noite passada, estrada estava sem movimento, quem sabe teriam mais sorte agora pela manhã. Agora, olhando para o lado, Guto fitava aquela moça com a cabeça repousada em seu ombro. Mais uma vez, as mesmas vozes de outrora passaram a preencher sua mente e, sem mais, ele lembrou-se da última viagem que fez à fazenda Malter, a mesma viagem onde testemunhou a tragédia que o perturba até hoje. Por um instante, Guto jurou que quem estava ali, ao seu lado, não era Nathalia, mas sim Rebeca. Não compreendia o que estava acontecendo, mas tinha certeza que a irmã estava naquele carro, dormindo com a cabeça encostada em seu ombro e aquilo, de certa forma, o deixou furioso. Sorrateiramente, alcançou a mochila que trazia consigo. Em um dos bolsos continha um chaveiro e um canivete. Guto pegou aquela pequena arma, perigosa o suficiente para o que pretendia. Queria machucar Rebeca a todo custo, vingar-se por todas as atrocidades as quais ela o fizera passar. Estava certo do que faria e aquela era a oportunidade perfeita. Colocando o canivete no pescoço daquela moça ao seu lado, Guto estava pronto para cometer o ato, quando assustou-se com batidas no vidro do carro.
Um caminhoneiro, ao avistar o carro na beira da estrada, preocupou-se e foi assegurar-se de que as coisas estavam bem. Antes de abrir a porta do carro, Guto, mais uma vez, olhou para a mulher ao seu lado, assustando-se ao perceber que era Nathalia quem estava ali. A moça, após o barulho, despertou e só então notou que já era dia. Ambos, Guto e Nathalia, saíram do carro. O caminhoneiro foi o primeiro a se pronunciar.
– O que aconteceu aqui, meu amigo? Acidente? – questionou, preocupado.
– Um pequeno acidente, resultante da falta de atenção. – respondeu Nathalia, ironicamente.
Guto, em sua defesa, buscou se explicar.
– Eu estava distraído na estrada, não notei o carro que estava à nossa frente, meus pensamentos estavam longe. Quando me espantei e percebi, já era um pouco tarde. Até tentei desviar, mas já não tinha jeito. Quando dei por mim, já tinha jogado o carro nesta cerca. – concluiu, constrangido.
– Mas, vocês estão bem? Ninguém se machucou? – indagou o caminhoneiro.
– Eu tive um leve ferimento na testa, mas nada com o que se preocupar. – respondeu Nathalia, prontamente. – O senhor sabe onde podemos encontrar um posto de gasolina? Ou, melhor, uma oficina mecânica? Por favor, nos diga que tem uma pelas proximidades.
– Olha, para a sorte de vocês, tem um mecânico, amigo meu, que tem uma oficina que fica há alguns minutos de carro. Afirmou o moço e, após, acrescentou. – Tenho um reboque na minha caranga, querem essa força?
– Cara, muito obrigado mesmo. – disse Guto, apertando a mão do caminhoneiro. – Nós queremos sim e, desde já, aviso que estamos te devendo uma. Minha namorada e eu tivemos que passar a noite aqui e ainda nem chegamos ao nosso destino.
– Perdoem minha intromissão, mas, para onde vocês estão indo? – indagou o caminhoneiro.
– Para o Orfanato Bom Jardim, o senhor conhece?
. – Ô, se conheço. – disse o moço, sorrindo. – Não apenas conheço, como estou indo para lá.
– Não brinca. – comentou Nathalia, incrédula.
– Não estou brincando. Sou eu quem faço a entrega de suprimentos daquele local.
– Ótimo. – exclamou Guto. Então nós podemos deixar o carro no mecânico e, assim, vamos com o senhor para o orfanato, tudo bem?
– Perfeito, amigo, só preciso de ajuda para ajeitar o reboque. – pediu o caminhoneiro à Guto e, após ambos foram ajeitar o que precisava ser ajeitado.
No caminho para o orfanato, Nathalia e o namorado iam questionando acerca do orfanato. Ambos tinham muita curiosidade sobre aquele local, principalmente por conta do telefonema, que acabou os pegando de surpresa.
– O senhor faz entrega para o orfanato há muito tempo? – questionou a moça ao caminhoneiro.
– Primeiro, vamos combinar uma coisa, está bem? – bradou o moço. – Não precisam me chamar de senhor, não, eu acabo me sentindo mais velho do que já sou. – e deu um leve sorriso, deixando à mostra os dentes bem amarelados, provavelmente por conta do uso de cigarro.
– Está bem, me perdoe. – disse Nathalia, também sorrindo. – Você faz entrega para o orfanato há quanto tempo?
– A minha vida toda. Desde que eu me entendo por gente, faço entrega para lá. O povo da empresa paga bem e eu preciso deste dinheiro para sustentar essa caranga aqui. – disse o moço, referindo-se ao seu caminhão.
– Você conhece muita gente lá? – indagou Guto.
– Conheço todo mundo, lá, amigo. Todos me tratam bem e acabamos criando uma boa amizade.
– As crianças são bem tratadas lá? Quero dizer... Elas vivem bem lá? São felizes? – Nathalia estava visivelmente curiosa.
– Olha, moça, para você ter uma ideia, é muito difícil uma criança querer sair dali, sabe? A alimentação é boa, eles têm acesso à educação, saúde e lazer, a única coisa que, as vezes, lhes incomoda são as regras de convivência.
– Regras de convivência? – indagou Guto.
– Isso aí mesmo. Mas são coisas básicas, sabe? Não podem brigar, tem que se esforçar nos estudos, respeitar as outras crianças e, principalmente, não ir para a casinha no quintal. Só que, ainda assim, essa última regra, por veze, é descumprida, sabem como é criança, não sabem? Adoram o proibido. Mas quando alguma delas é pega, ficam de castigo por dias.
– Mas qual a razão de tanto rigor? – questionou, mais uma vez, Nathalia.
– Não me lembro ao certo, mas é uma história antiga, sabe? Até onde eu sei, anos atrás, um garoto assassinou duas cuidadoras do local, na mesma casinha onde as crianças, atualmente, são proibidas de ir. Eu não sei se a história é verdadeira, ou foi inventada para assustar as crianças. As pessoas mais antigas falam que o garoto assassino estava possuído pelo demônio ou algo parecido. E sabem o que é mais extraordinário? Ele tinha apenas onze anos.
– Onze anos? – indagou Guto, assustado.
– Estranho, não é? – bradou o caminhoneiro. – Quem sabe seja uma história inventada para assustar, nada mais que isso.
Guto, no mesmo instante, lembrou-se da maldição de sua família, sobretudo de Rebeca e do ocorrido de quinze anos atrás. Aflito, assustado e com medo da resposta, se propôs a questionar.
– Por um acaso, você saberia me dizer o nome desta criança?
– Impossível! – exclamou o caminhoneiro. – Minha memória não é a das melhores. – deu uma pequena pausa e, após, acrescentou. – O sobrenome do garoto, no entanto, não é tão comum... acho que era Marques... Montês... Malter, é isso, tenho certeza que o sobrenome dele era Malter.
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Descendência Malter (Em processo de revisão )
HorrorQuinze anos se passaram desde o ocorrido na fazenda Malter. Guto, ainda que com cicatrizes, tentou seguir sua vida. Estudou, trabalhou, formou-se em administração e hoje, ao lado da namorada Nathalia, viveria uma vida razoavelmente boa em Porto Aleg...