Capítulo Único

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A praça pela qual Vernon passava ao lado de seu pai ainda continha certo odor de fumaça, e a fuligem que o vento espalhava fazia arder seus olhos, mas ninguém além dele parecia se incomodar com isso. Talvez por já estarem acostumados, afinal, ultimamente bruxas e mais bruxas eram queimadas. Ver as enormes fogueiras rodeadas por uma multidão de gritos raivosos ou as vezes até orgulhosos, passou a ser algo tão comum quanto buscar água no poço pela manhã.
Continuou a andar olhando para o chão à sua frente, após receber um olhar repreendedor de seu pai, que havia percebido a diminuição de ritmo do mais novo, observando o que sobrou da cena de assassinatos cruéis ocorridos em praça pública na noite passada.
- Já falamos sobre pensamentos, Vernon. - Disse o mais velho, com sua voz naturalmente amargurada e ríspida, no momento em que o filho chegou novamente ao seu lado. - Não falamos?
Com um aceno de cabeça e ainda evitando os olhos do pai, concordou em silêncio. Poucas vezes trocava palavras com aquele homem, e quando acontecia, não era bom. O único modo de deixá-lo satisfeito era trabalhando, então era apenas o que Vernon tentava fazer, e nada mais. Até porque sabia que a moradia na qual eles, sua mãe e irmãzinha viviam, dependia do trabalho que faziam nas terras de seu senhor feudal. Ah, aquele sim merecia ir para a fogueira, mas não era algo que ousava pronunciar em voz alta.
Abruptamente as mãos calejadas de seu progenitor o segurou forte pelos dois braços, apertando-o com uma força muito maior do que a necessária caso a intenção fosse apenas chamar sua atenção, mas Vernon não se atrevia a dizer que doía.
- Agora você vai me responder. O que falamos sobre pensamentos?
- Eles atrapalham... No trabalho.
- Isso mesmo, e sabe que o único motivo pela qual está aqui é o trabalho, então se continuar com isso antes mesmo de chegarmos lá, pode ter certeza que amanhã será você nessa fogueira.
A ideia fez com que um nó se instalasse em sua garganta, e um desespero nunca antes experienciado pelo garoto o consumisse, fazendo-o desvencilhar do aperto do pai e correr para o único lugar que sabia que não seria seguido: a floresta que rodeava o feudo.
Não tinha certeza do quanto tinha corrido, mas mas sabia que era o suficiente para não ter certeza de qual direção ficava sua casa. Respirou fundo. Estava tudo bem, pensou, não pretendia voltar por um tempo mesmo. E com esse pensamento em mente, voltou a caminhar em meio às árvores.
Quando viu a outra pessoa, inicialmente pensou ser algum caçador de bruxas, mas ao se aproximar percebeu que não estava vestido como os caçadores do clero, e não parecia ter a idade deles, e sim a idade de Vernon, talvez uns dois ou três anos mais velho. Teria passado reto, mas algo na cena o chamou atenção. O garoto, de cabelos negros e corpo esguio, tinha um corvo aninhado no ombro. Fora ensinado desde sempre que corvos eram sinal de mal agouro ou até morte, mas não sabia se acreditava ou não. Curioso, aproximou-se o suficiente para que sua presença fosse notada pelo animal, que grasnou alertando o menino misterioso.
- O que quer? - ele perguntou, sua voz soando mais calma e doce do que Vernon esperava.
- Nada. Qual o seu nome? - Se aproximou mais, ficando a cerca de um metro de distância do garoto e a ave, que grasnou novamente com a aproximação, como um aviso de que ali era o limite.
- Não pode dizer que não quer nada e imediatamente perguntar meu nome. Se não quisesse nada não estaria falando comigo.
- Acho que tem razão. Quero saber sobre ele. - Apontou para o animal negro.
- É um corvo, nunca viu um? - A naturalidade na qual ele falava intrigava Vernon, como se o animal fosse tão querido para todos quanto um coelho, quando na verdade não era. Talvez para ele fosse.
- De onde eu venho, eles trazem coisas ruins. Azar... Morte. Você não vive no feudo, não é? Vive na floresta? É... Filho de uma bruxa? - Seus pensamentos se transformaram em palavras antes que pudesse realmente pensar no peso delas.
- Você pergunta demais. - Respondeu e transferiu o corvo do ombro para a mão. - Meu nome é Josh, contente-se com isso e vá embora agora ou faço com que ele passe todo o azar e mau agouro para você. A floresta não é lugar para pessoas do feudo.
Vernon quis rir, mas parecia uma ameaça séria, só não o suficiente para fazê-lo ir embora com mais uma dúvida:
- Pode realmente mandar nele? Acredita que ele faça mal a alguém?
- Você não? - respondeu Josh, finalmente mostrando surpresa em seu tom de voz.
Precisou pensar antes de responder, mas quando o fez, sua voz saiu firme:
- Não.
A fala de Vernon despertou algo no garoto Josh. Ouvira o suficiente sobre pessoas do feudo para saber o que faziam com as "bruxas". Ele próprio nunca havia conhecido uma, mas sabia que pessoas como ele, que utilizavam de ervas e chás como remédios, eram incriminados pela prática de "feitiçaria", por isso se escondiam na floresta. O menino, na qual ainda não havia perguntado o nome, parecia não concordar com as crenças do feudo, mesmo vindo de lá.
Com a ave em uma das mãos, graciosamente sobre seus dedos e garras, se aproximou do forasteiro e colocou-a em seu ombro.
- Sou filho de alguém que vocês chamariam de bruxa, mas não praticamos feitiçaria. Utilizamos de recursos da floresta pra curar. Encontrei esse corvo com a asa machucada no verão passado. Curei o quanto pude mas ele não consegue mais voar e acabou se acostumando com a presença humana. - Contou, se sentindo confortável com o garoto, que ouvia atentamente à cada palavra, apesar de parecer tenso com o corvo em seu ombro. - Animais, seja qual for, não dão azar pra ninguém. Essas coisas são só mentiras que as pessoas inventam pra tentar explicar aquilo que elas não entendem. Agora que sabe, me diga, qual o seu nome e porquê está tão longe de casa?
Vernon demorou uns bons segundos pra processar o ocorrido. Ninguém nunca havia conversado com ele daquele modo, sem nenhuma ordem embutida ou tom de desdém por ter que se dirigir à um camponês. Estava sendo tratado com igualitariedade, e percebeu que gostava disso.
- Meu nome é Vernon. Fugi do meu pai. Do mesmo jeito que pergunto demais, eu penso demais, e ele não gosta disso. Disse que eu seria o próximo à ir pra fogueira caso continuassem.
- E você não consegue parar, não é? - Perguntou Josh, recolhendo a ave e novamente pousando-a no ombro.
- Não. - Respondeu num quase sussurro. Não era algo na qual se orgulhava.
- Você quer voltar pra lá?
- Não. - Dessa vez firme, convicto.
Josh sorriu e o segurou pelo braço. Não como seu pai havia feito mais cedo, mas de um modo gentil, com o intuito de guia-lo durante o percurso que começaram a trilhar.
- Josh, pra onde vamos?
- Conhecer minha mãe. Você tem muito que aprender. - Disse, ainda guiando o garoto pela mata. - Vamos fugir da fogueira juntos, Vernon.

The Crow BoyOnde histórias criam vida. Descubra agora