Já faz algum tempo desde a invasão. As guerras civis estão se multiplicando desde a bomba atômica. Nunca vi os EUA tão desesperado em matar russos.
- Ei! Está sonhando acordada de novo?
Monica sempre pegava no meu pé.
- Só estava pensando.
Voltei a servir uma papa horrorosa para as pessoas. Trabalho fazendo serviço comunitário. Após o ataque das bombas, muitas pessoas ficaram sem casas e até mesmo sem alimento. Faço hora extra ajudando na cantina do shopping abandonado.
- Assim está melhor.
Assim que meu turno acabou, passei pela análise infecciosa para ver se tinha sido exposta a algum tipo de radiação ou vírus. Após a inspeção, fui para casa em um ônibus compartilhado.
- Oi! Chegou tarde, de novo.
- Adivinha!
Minha mãe riu e beijou minha testa colocando um prato de biscoito em cima da mesa.
- Ele não te deu o macarrão né?
Perguntei olhando os biscoitos.
- Está sendo muito difícil...as lojas foram saqueadas e é tudo o que ele tem.
- Ou é por que estamos sem dinheiro?
Ela ficou triste quando eu disse sobre o dinheiro, mas não tinha como evitar, Jason pega o dinheiro para sair com os amigos e nem pensa na gente.
- Mãe, está ficando fora de controle! Ele não pode fazer isso!
- Samantha, a conversa acaba aqui.
Ela saiu da cozinha em direção ao quarto.
Jason Meu irmão mais velho. Ele merece apodrecer nas celas do ministério.
- Chegou tarde hoje.
Disse Jason entrando na cozinha.
- E você também, estava usando droga com os seus amigos retardados?
- Eles não são retardados, e sim, eu estava usando.
- Você é ridículo sabia?
- É, você deixa isso bem claro.
Ele sorriu e subiu para o quarto.
As coisas estavam difíceis para as pessoas que moravam na parte norte da cidade. Os sulistas são os beneficiados, pelo menos é assim que nós os chamamos. Eu acho que eles tem total apoio do ministério, enquanto nos somos esquecidos e abandonados.
- O que acha?
Olhei minha mãe com um vestido na mão.
- Perdão?
- De novo? Esqueceu os seus remédios?
- Pode ser, acordei atrasada hoje.
Ela colocou a mão no rosto e pegou os remédios para mim. Peguei um copo de água e tomei os remédios.
- Desculpa, ainda não me acostumei com esse sistema.
- Tente se acostumar, daqui pra frente vai ser assim.
- Desigualdade e solidão?
Ela olhou pra mim com uma expressão séria.
- Com desigualdade e solidão.
Foram suas últimas palavras.
Andar de máscara por aí já virou conjunto de roupa. As pessoas escolhiam as roupas que iam usar de acordo com a cor da máscara só para ficar combinando. Me irrita elas terem normalizado algo que obviamente não é normal!
- Falando sozinha de novo?
Vi Jason pegar um copo de vidro na cozinha.
- Não?
O olhei.
- Depois os meus amigos são retardados.
Ele disse rindo.
- Escuta aqui seu idiota!
Bati na mesa com ódio.
- Eu trabalho 8hrs por turno com intervalo de 5 minutos pra você ficar gastando o MEU dinheiro com os seus amigos idiotas e sem noção! Tudo o que você come é graças a mim! Se odeia tanto esse trabalho então não come mais a MINHA COMIDA!
Subi as escadas batendo os pés e entrei no meu quarto fechando a porta com força.
- Idiota.
Peguei uma fita cassete e coloquei pra tocar. Não sei o nome do Cantor, mas como era a única música que existia na casa, não me importava muito. (Pode ser a música que vier na sua cabeça)
Já estava de saco cheio de tudo. Do sistema, do Jason, da minha mãe com aquele namorado bebado dela...AAAAAAAAH!
Lembro da música ter parado quando o ódio subiu a minha cabeça.
- Desculpa.
Disse para Tom, o meu gato de estimação laranja e temperamental.
- Te assustou né?
Na tentativa de pegar ele no colo, acabei sendo arranhada no rosto.
- Gato idiota!
Ele foi para o telhado pela janela e sumiu de vista. Tom era um gato independente, fazia o que queria e ia onde mais gostava de ir, na peixaria do Sr. Clippers.
Depois de um momento a sós com meus pensamentos, lembrei que havia ganhado um extra no turno de hoje e decidi comprar algo doce no mercado ao lado. Coloquei minhas botas de borracha e fui para o quarto de minha mãe.
- Mãe, vou no mercado okay?
- Samantha eu vou sair daqui a pouco, não quer esperar eu comprar pra você ?
- E o Joe vai esperar?
Ela revirou os olhos e concordou com a cabeça.
- Está bem! Mas volta logo.
Sorri e desci as escadas correndo. Peguei uma máscara branca que estava pendurada no chaveiro e abri a porta. Um vento frio quase me fez mudar de ideia, mas passei pela porta e a fechei. Olhei ao redor e realmente, o inverno havia chegado. Ao descer as escadas da varanda, acabei escorregando e batendo com a cabeça no gelo.
- Você está bem?
Um garoto que estava passando viu minha cena vergonhosa e me ajudou a levantar.
- Sim, obrigada.
- Essas botas de borracha não são uma boa ideia, estamos no inverno sabia?
Não respondi, apenas o observei um pouco.
- Você mora aqui? É a filha da Sra. Clark ne?
Confirmei positivamente com a cabeça.
- Não sabe falar?
Ele disse em tom de brincadeira.
- Disse que estou bem, não é o suficiente?
- Ela é brava!
Ele riu e quase me fez o acompanhar, mas mantive a postura séria e fria.
- A duas quadras daqui tem uma loja de roupas, vai conseguir uma bota feita de pele se quiser.
- Mas eu gosto dessas.
- Não no inverno.
Olhei para minhas botas e talvez ele tivesse razão.
- Não tenho dinheiro então...
- E qual nortista tem?
Ele sorriu.
- bom, tenho que ir. Nos vemos por aí senhorita Clark.
Ele saiu andando em direção a cidade grande. Nesse tempo era quase impossível ficar 1h na rua.
Após processar o que havia acontecido, me ajeitei e continuei meu caminho.
Ao chegar no centro da vila, quase todos os comércios estavam fechados. Alguns falidos e outros abandonados.
Entrei no mercado e o sininho confirmou minha chegada.
- Samantha! Que bom vê-la novamente!
Disse Sr. Guibs.
- Eu estive aqui ontem, não se lembra?
- Não muito! Minha memória não é boa a séculos minha querida!
Ele riu com a mão na barriga, parecia um velho marinheiro cheio de histórias para contar.
- O que vai ser hoje?
Ele perguntou sorridente.
- Chocolate.
- Cuidado com as cáries!
Disse me dando uma barra de chocolate. Dei as moedas a ele e guardei o chocolate na bolsa.
- Sabe se a loja de roupas está funcionando? Passei em frente e a porta estava fechada.
Perguntei olhando para a loja de roupas da janela.
- Está funcionando! A velha Ruth deixa a porta fechada para a neve não entrar.
- Ah sim. Obrigada, tenha um bom dia.
- Dê um oi a Carla por mim!
Carla, nome da minha mãe. Ela trabalhou muito na minha idade para conseguir um lugar no ministério. Sim, ela já foi do ministério. Por que não estamos morando no sul? Nem eu sei.
Atravessei a rua e parei de frente para a loja de roupas. Os manequins estavam empoeirados e com teias de aranha.
- Olá?
Disse entrando na loja.
As roupas estavam limpas, pelo menos isso. O balcão parecia uma cova de tanta poeira e terra que tinha nele. Como tem terra em um balcão???
- Posso ajudar?
Me assustei com a pergunta. Virei para trás e olhei para baixo, uma senhora baixinha de cabelos brancos me encarava com seus pequenos olhinhos pretos.
- Tem bota de pele?
Ela sorriu e me levou até um corredor.
- Quanto você calça?
Ela perguntou procurando algumas botas.
- 35.
- Mas que pé pequeno você tem!
Ela riu e a estranhei.
- Tente este.
Ela me deu uma bota branca com pelos pretos na borda. Coloquei e senti que algo me incomodava.
- Isso é...UM FILHOTE DE RATO???
Joguei a bota longe e lembro que no momento, me deu muita ânsia de vômito.
- Ora! É um ratinho!
Sua voz foi sumindo quando atravessou o corredor atrás da bota.
- E essa marrom?
Disse com a bota em mãos. As coloquei e até então eram confortáveis e não havia nenhum rato.
- Essas são 20 reais.
A olhei.
- Tão caras assim?
- Assim como você, tenho que construir minha vida e se possível viver o pouco que me resta!
Tirei as botas e as coloquei na caixa. Não podia pagar por elas, Carla me mataria se chegasse com botas de pele em casa.
- Toma.
Dei os 6 reais que me restavam e dei para ela.
- Não posso aceitar.
Disse a velhinha me devolvendo o dinheiro.
- Eu insisto. O inverno vai acabar e as botas de pele não serão tão chamativas assim.
Ela sorriu e aceitou.
- Que Deus te abençoe.
Sorri de volta e sai da loja.
Chegando em casa, gritei pela minha mãe, mas ela não respondia. Pensei então que poderia ter saído com Joe.
- Jason! Sua vez de lavar a louça!
- Não enche!
Ele gritou e bateu a porta.
Como uma pessoa de 18 anos consegue ser tão irresponsável assim?
- Aff, vou ter que lavar.
Lavar louça é uma das coisas mais nojentas que eu já fiz. Odeio lavar louça! Só de ver a comida molhada...ARGH!
- Jason! É sério, vem lavar!
Lavei as mãos e sentei no sofá, peguei minha barra de chocolate da mochila e comi um quadradinho.
- Me da um pedaço.
Disse Jason indo para a cozinha.
- Não. Vai fumar com seus amigos.
- Vou mesmo, pirralha.
Eu não era tão nova assim. Jason tinha 18 enquanto eu estava aproveitando meus 15 da pior maneira possível.
- Pelo menos a louça você tinha que lavar né!
Falei olhando ele lavar a louça.
- Yes princess.
Disse Jason revirando os olhos.
Subi para o meu quarto e tirei a roupa suja. Fiquei me olhando no espelho e pensando, "As meninas do sul se importam com a aparência?
Era uma pergunta comum. Nós nortistas nunca demos a mínima para esse tipo de coisa, não existe um padrão ou algo do tipo.
- Sam, você está ótima!
Disse para mim mesma.
Peguei uma toalha e entrei no banheiro. Como estávamos sem energia a um mês, entrei na banheira e com um balde, joguei água em cima de mim mesma.
A hora do banho era a minha preferida do dia. Podia imaginar várias coisas sentada na água congelante.
Imaginação. Está aí uma coisa que o povo do Norte não considera normal.
Pensar demais é errado. Não podemos pensar nas coisas que não podemos ter, não podemos imaginar coisas que não existem. Por isso os remédios.
Não. Eles não me impedem de pensar, mas me fazem dormir, com isso eu não tenho sonhos.
Ao sair da banheira, me sequei e fui para o quarto. Coloquei uma roupa limpa e peguei um livro para ler.
- Oi, já voltou?
Disse minha mãe entrando no quarto.
- Eu disse que seria rápido.
Falei mostrando a barra de chocolate.
- Chocolate branco! Como conseguiu?
Sorri e ela também.
- O Sr. Guibs separou para mim.
- Ele é um homem bom.
Disse minha mãe.
- Quer?
Dei pra ela 4 quadradinhos.
- Momentos raros como esse...
- Devem ser guardados para sempre.
Continuei a frase dela.
Após terminar o chocolate, ela ficou triste.
Por mais que chocolate fosse algo comum, aqui no Norte, era algo quase impossível de conseguir.
- Boa noite mãe.
Disse me ajeitando na cama.
- Boa noite, meu amor.
Ela beijou minha testa e me cobriu.
Pode parecer coisa de criança, mas como o tempo aqui passa rápido, não podemos desperdiçar nenhum momento sequer.
- Dorme bem.
Disse Carla saindo do meu quarto.
Me aconcheguei mais na cama e me virei de lado. Peguei as pílulas que estavam na cabeceira e as tomei com um copo d'água.
Fechei os olhos e apaguei.
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365 Dias
Science FictionO ano é 2084. Após uma guerra mundial em 2070, metade de toda a raça humana foi extinta da Terra, ficando apenas 10% da população. Com uma política quebrada e o governo sendo controlado pelo lado pobre do globo terrestre, os nortista tentam sobrevi...