Finalmente a carta havia chegado, o meio arcaico mais comunicativo dentre todos os mundos. Escrita à mão, de punho orgânico, assim como requisitado. Nela constava a descrição de seus sonhos, o quinto, consecutivo e idêntico, que pretendia realizar. Abastado desde a vigésima geração passada, a caridade lhe apregoava a alma; quanta generosidade escorria pelos seus ossos centenários de fibra nanotec, onde nutrir o néctar das carnes firmes, que apenas as novas gerações de Rufis, a Ter 21, poderiam lhe proporcionar, era o maior de seus prazeres. Logicamente, com a condição de que os espólios não passassem de flores na puberdade. A especiaria deveria ser consumida ainda fresca. Era a sua ética.
Junto a caligrafia torta, constavam as súplicas selecionadas pelo meio hostil, pela fome, agruras do clima, da orfandade e da solidão. Jorge era o seu "nome". Lindo nome. Como todos os bem-nascidos entre os rebeldes da revolução, era agênero, multimorfo para propagar a população. Uma época de atrocidades jamais esquecida, e nunca mais lembrada. Ele descrevia a pureza de sua pele, a lisura dos cabelos, a profundidade dos orifícios, assim como instruído. O pacto era simples, uma oferenda sagrada aos caprichos do mestre, àquele que o ensinaria todos os costumes dos nobres. Caso superasse as adversidades pelo período de defloramento, quando adulto, seria aceito, se assim quisesse, no ceio da tradicional sociedade de Gênesis, os primeiros deuses decadentes, proliferadores da superioridade primal.
Junto ao envelope constava uma foto, no clássico estilo de impressão revelada sobre papel, técnica abandonada a eras. A textura suave da folha e a imagem despida do convidado lhe excitaram tremendamente, mal podia esperar para ensinar todos os segredos do mundo ao seu novo pupilo. E para além dos lamentos e da imagem, constava também no envelope o contato a ser feito com o terminal de transporte.
Requisitavam as coordenadas, a latitude e longitude estelar, as dimensões exatas do cômodo para o qual teletransportariam a encomenda, e todos os objetos que compartilhavam o espaço interno; suas dimensões precisas, para evitar aniquilação através da sobreposição de matéria. A ideia de um cadáver artístico e quimérico, tentava a imaginação do benfeitor, mas o melhor prêmio era aquele que se degustava em pequenas porções de deleite, e não em um instante efêmero de regozijo.
Seguiu à risca o que lhe foi requisitado, e para além da matemática universal que tudo espacializa e referência. Para além das imagens pluridimensionais e dos dados milimétricos computados pelos escâneres e sensores cotidianos. Descreveu, com a voz em polvorosa, o recinto em que habitaria por toda a estadia o seu novo companheiro de aventuras. Um colchão de exatos 3 metros quadrados ocupa 1 décimo do recinto, cor branca, altura, 30 centímetros, disposto ao extremo do local, contra as paredes norte e leste do cômodo. À diagonal oposta se encontra o sanitário e o chuveiro, isolados por cortinas transparentes em um semi cubículo de 1,5 metros quadrados. Junto à parede leste, no decorrer de toda a sua extensão, se encontram prateleiras afixadas, as quais continham o espaço necessário para acomodar todos os tipos de objetos, elas se afastavam 30 centímetros em direção ao oeste. O único móvel, para além do amplo espaço vazio que definia a sala, era uma clássica dama de ferro, herança familiar de forte cunho afetivo, que ornamentava à extremidade oeste, recostada junto a parede norte, na diagonal das memórias. O resto da mobília o anfitrião retirou prévia e temporariamente, mas muitas das ferramentas e objetos que seriam utilizados para oferecer o máximo de aprendizado e conforto ao discípulo, estavam adequadamente à espera em uma sala adjacente.
A penumbra luminosa ocupava todo o eco do porão, dentre as manchas avermelhadas e as alucinações abandonadas, muitas alegrias ainda gemiam afixadas à história daquelas paredes. Enviou entusiasmado as coordenadas e a descrição a central de transportes, e de braços abertos, recebeu seu novo melhor amigo.