Capítulo II ● Youngjae

789 101 17
                                    

Cresci brincando com as crianças do meu bairro, e mesmo que para os adultos eu fosse diferente delas, elas nunca me fizeram sentir assim, todas sempre inventavam brincadeiras para que eu não me sentisse de fora, e era muito mais fácil lidar com elas do que com as pessoas grandes. Acho que é mais fácil para as crianças entenderem as diferenças, elas não julgam como os adultos, e são sinceras e inocentes como anjos, de alguma forma todas elas sabiam que não tinha nada de errado comigo, e algumas até diziam que na verdade nascer sem enxergar era muito mais legal, porque mesmo que eu não pudesse ver, eu tinha uma super audição, e isso me tornava quase um super herói.

Nós vivemos em Mokpo desde o dia em que eu nasci até eu completar 7 anos, quando então precisamos nos mudar para Seul porque minha mãe ficou muito doente. Nessa época eu já sabia me virar sozinho mesmo sem poder ver, tinha uma habilidade extraordinária de sentir as coisas, e minha audição era mesmo muito boa, mas mesmo com tudo isso, demorou um pouquinho para eu me acostumar com a casa nova e a cidade nova, Seul era muito diferente de Mokpo, tanto pelo tamanho quanto pelo barulho, e isso foi um problema por um tempo.

Foi muito difícil lidar com a doença da minha mãe também, todas as pessoas ao redor agiam como se ela fosse uma boneca de porcelana e no começo eu não conseguia entender o porquê. Ela não me deixava toca-la e eu não podia ve-la para saber o quão mal ela estava, e como a voz dela não tinha mudado, para mim ela continuava a ser a mesma mãe de sempre. Agora eu vejo que era isso o que ela queria o tempo todo, me manter afastado para que eu não entendesse o quão ruim era a situação dela, sempre tentando não me assustar, mesmo quando não tinha forças nem para se manter longe do medo.

Descobri que a doença tinha mudado minha mãe em uma manhã de dezembro, quando a neve caia do céu e fazia o chão ficar branquinho como as nuvens de algodão e as balinhas que minha vó me dava no natal, cena que nunca vi na minha vida, mas que sabia que era linda apenas pelo timbre que a voz da minha mãe tomava quando me descrevia a paisagem nas tardes frias de inverno antes do jantar.

Entrei no quarto que ela dividia com meu pai animado para contar a ela que tinha sentido a neve chegando, ansioso para ouvir ela me descrever como o bairro estava naquela manhã. Toquei em seu braço, como sempre fazia quando ia acorda-la, mas ao invés de um braço fofinho e quente, como era o braço de minha mãe na época em que estava saudável, meus dedos sentiram uma coisa ossuda e fria, que me fez ficar assustado e andar instintivamente para trás.

Aquela coisa em nada parecia minha mãe, mas eu sabia que aquele era o quarto dela e que aquela era a metade dela da cama, eu tinha dormido ali vezes o suficiente a minha infância inteira para saber exatamente onde ficava cada coisinha na cama dos meus pais, então eu tinha certeza disso, e por esse motivo me obriguei a levar minha mão ao rosto da pessoa deitada na cama, e delicadamente percorri os dedos por todo ele, desde o queixo até a testa, contornando a boca e os olhos, só para constatar, assustado, que aquela era sim minha mãe, estava muito magra, mas era ela.

Parei minha mão em sua cabeça, no lugar onde deveriam estar seus lindos cabelos ondulados que eram marrons da cor da terra e das folhas secas de outono, e não tinha nada lá, apenas pele lisa e fria. Minha mãe acordou com o toque, e senti que ela se assustou quando me sentiu toca-la, e acho que foi pela forma como ela se levantou da cama muitou rapido, fazendo com que minha mão, que antes estava parada na cabeça lisa dela, caisse pesadamente do lado do meu corpo, ou então o som do suspiro cansado que meu pai deu quando viu a cena, eu não sei ao certo, mas naquele instante eu entendi que algo estava mesmo muito errado, e de repente eu estava chorando e tremendo, completamente paralisado de medo, porque eu era o único que não via o que estava acontecendo com minha mãe, ainda não.

Ela me abraçou para tentar me acalmar, e cantarolou uma música que sempre cantava para mim em noites de tempestade, quando o barulho dos trovões faziam meus ouvidos doerem e o medo era tanto que eu sentia que ia morrer, e com o tempo eu fui me acalmando, porque aquela ainda era a voz da minha mãe, e aquele abraço, mesmo que diferente, ainda era aconchegante como a calmaria depois da tempestade, ainda era ela ali e, por ora, eu sabia que ficaria tudo bem.

Mais tarde, quando eu estava mais calmo sentado em frente a lareira bebendo chocolate quente e sentindo o calor do fogo aquecer minhas bochechas e meus dedos, ela me explicou o que era a doença que tinha, e como essa doença fazia o corpo dela se tranformar de varias formas, e eu entendi, depois de tudo, o porque de as outras pessoas agirem como se ela fosse de porcelana.

Minha mãe tinha osteossarcoma, um tipo raro de câncer ósseo que começa nas células formadoras dos ossos e te mata lentamente, e fazia quimioterapia, um tratamento que matava o câncer ao mesmo tempo que a matava, e aquilo tudo era uma corrida contra o tempo para saber quem a quimioterapia matava primeiro. No dia em que percebi que minha mãe estava mesmo muito doente, ela tinha acabado de descobrir que tinha perdido a corrida contra as células ruins, e o câncer, que era feito dela, estava matando todos os órgãos de seu corpo, que também eram feitos dela.

Ela morreu em uma tarde quente de verão, como nos dias antes de meu nascimento, quando o sol era tão forte que quebrava as ruas e aprisionava as crianças dentro de casa. Não tinha pássaros cantando lá fora, e o tempo parecia ter parado de andar, o ar era tão rarefeito que eu quase não conseguia respirar, e todos os astros pareceram parar para presenciar a cena do corpo pequeno e magro de minha mãe cedendo ao cansaço e finalmente descansando em uma cama fria de hospital, sendo vencido pelo seu próprio corpo.

Eu fui o único que não viu ela partindo, mas fui o primeiro para quem ela disse adeus.

Foi difícil perder ela, eu odiava a idéia de não a ter mais por perto, cantando no meu ouvido todas as noites ou rindo de mim quando eu pintava uma árvore de azul ou errava uma nota no piano. Odiava pensar em não ter mais ela me levando no parque e sentando comigo apenas para ouvir o tempo passar. Odiava a idéia de um mundo sem uma das pessoas que eu mais amava nele. Porém, foi mais difícil para o meu pai, ele tinha ficado ao lado dela durante todo o tratamento, jurando que tudo daria certo, acreditando com todas as forças que tudo ficaria bem, e de repente ele não tinha perdido apenas a mulher, mas também sua melhor amiga e parceira de vida.

Ele não soube lidar com a perda, e eu sabia que tudo só ficava mais difícil para ele porque tinha a mim, o filho cego que agora além de tudo também não tinha mais uma mãe, e no começo ele até tentou se fazer de forte por mim, porque não queria demonstrar fraqueza na minha frente e não queria que eu me preocupasse com ele, mas embora eu não pudesse ve-lo, podia ouvir o tom quebradisso de sua voz sempre que me dava boa noite, e os choros silenciosos no meio da madrugada, mesmo que ele tentasse esconde-los de mim no vazio de seu quarto, ficavam cada vez mais frequentes e mais altos, e a dor, escondida no escuro da enorme casa silenciosa, onde agora morávamos só os dois, tinha se tornado quase palpável.

As coisas foram assim por um tempo, meu pai se transformou quase em um zumbi, andando pela casa vazia carregando sua dor e solidão, sofrendo em silêncio para que eu não pudesse perceber, sem falar, agindo como se nada mais fizesse sentido, e naquela época realmente não fazia. E eu pensava que seria assim para sempre, sem saber que na verdade o tempo passa, as vidas andam, as coisas mudam, a dor diminui, e aquilo que você achava que seria eterno, na verdade não é tão eterno assim. A dor sempre estaria aqui, eu sabia, mas um ano depois não era mais tão grande assim, e meu pai voltou a trabalhar, eu comecei a escola, e tudo pareceu estar andando de volta para o normal.

Blind • 2Jae (HIATUS) Onde histórias criam vida. Descubra agora