A rua do gigantesco prédio espelhado do Controle estava molhada e quase deserta, não fosse pela quilométrica fila do lado de fora, todos esperando para transcender.
A procura pelo procedimento aumentara ointenta e cinco por cento nos útimos seis meses, logo após o Controle oferecer diversos benefícios familiares àqueles dispostos a transcender. No começo, só os malucos e os desajustados ofereciam a si mesmos como voluntários. Agora, a coisa toda parecia a última, a solução final.
- Ei, garoto, quer um cartão verde? - perguntou um velho na fila para mim. Ele devia pensar que eu era um novato, mas essa já era minha quarta tentativa de transcender. Não era algo fácil. Muitas coisas poderiam atrapalhar o desejo de alguém de se transformar em pura energia. Milhares de pessoas tentavam transcender todos os anos, mas poucos conseguiam. Estavam mesmo ansiosos para tornarem-se dados digitais...
Os cartões verdes eram o segundo melhor tipo de cartões para realizar o procedimento de transcendência, que nada mais era do que a digitalização da consciência, a mudança do estado físico para o estado virtual. Isso possibilitava viver em um mundo onde tudo, literalmente tudo, era possível. Um mundo onde cada um poderia ter seu próprio universo.
A procura pelos cartões verdes era intensa, porque eles davam acesso aos primeiros lugares na fila de transcendência. Isso gerava um gigantesco mercado negro nas ruas e no mundo virtual.
Três pessoas, agora. Faltava pouco para que eu deixasse este mundo maldito. Meus pais sempre temeram minha queda para a transcendência. Perceberam isso em minhas atitudes de resistência ao sistema e meu problema com autoridades. Aposto que se arrependeram de ter entrado naquele de programa de manipulação genética do governo. Escolheram "pouco convencional" e "inconformado" para minhas características dominantes. Temiam que seu filhinho fosse mais um "robô" do sistema. Afinal, sempre foram metidos a revolucionariozinhos de esquina. Não esperavam que eu fosse tão longe, ao ponto de solicitar transcendência, o ápice da atitude inconformista.
Pouco importava isso, agora. Nunca fui muito ligado a eles, mesmo. E devo seguir meu destino...
Mas e quanto a Nina? Eu gostava dela. Mesmo achando uma idiotice aquele emprego no teatro de robôs. O preconceito das IAs contra humanos crescia a cada dia. E uma guerra não estava longe de acontecer. Nina dizia que tudo não passava de paranóia de gente maluca. Gente maluca feito eu, vale acrescentar. Mas eu a amava. Seus olhos verdes, seu cabelo loiro deslizando em meus dedos. Poderíamos ter um filho juntos. Ou talvez não. Talvez fôssemos muito diferentes e nosso destino fosse seguir caminhos opostos. Eu, no mundo virtual. Ela, no teatro de robôs.
Nina sempre achou uma besteira esse negócio de transcendência. Achava um tremendo desperdício de corpos e mentes. Sem falar na falta de sexo. Prazer físico nunca mais. O problema era que ela pensava em três dimensões ainda, incapaz de abrir a mente para a possibilidade de uma quarta. Apegava-se ao mundo tradicional decadente e sem futuro. O futuro estava na informação, todos sabiam disso.
Equanto caminhava na fila, lembrei-me de Fidel, meu adorável poodle. Modificado geneticamente para sentir apenas amor e carinho, sem nenhum instinto agressivo. Apenas companheirismo e dedicação. Sentiria falta dele. Pensei em levá-lo comigo, mas animais tornavam-se por demais instáveis no processo de transcendência. Por isso resolvi deixá-lo com minha tia, seguro, bem cuidado e alimentado.
Uma pessoa. O sonho está próximo. Sem mais doenças e velhice. No mundo virtual, não existem essas mazelas. Posso flutuar livremente no espaço e interagir com meus amigos. Há apenas prazer... e informação. Chegou a hora de deixar este mundo de merda.
O guarda pegou meu cartão e inseriu na máquina-leitora sem entusiasmo. Provavelmente já deve ter feito isso milhares de vezes. Ele me liberou logo, devia estar ansioso pela hora do jantar.
Dentro do complexo, um dróide flutuante azul me recebeu com olhos vermelhos e frios. Escaneou meu corpo através de um laser esverdeado e depois seguiu corredor adentro.
- Siga-me - falou ele, entrando apressado no complexo.
Caminhei por corredores cujas paredes eram apenas maquinário frio e sem vida. Barreiras onde trilhas de circuitos cintilavam velozes, levando informações na velocidade da luz. Levando almas eletrônicas que alcançaram a transcendência e agora vagavam pelas infinitas dimensões eletrônicas numa jornada infinita de beleza e conhecimento. E é para lá que eu estou indo.
Subitamente, agarraram meu braço direito e recebi uma injeção que me pôs para dormir quase instantaneamente. Mal tive tempo para olhar o rosto de quem fez isto, mas pude perceber que vestia uma roupa médica e usava uma máscara, junto com óculos metálicos que escondiam os olhos. Um dos cirurgiões do complexo. Já tinha ouvido falar deles antes. São ainda mais sinistros pessoalmente. Jamais diziam qualquer palavra, e isso era aterrador.
Acordei em uma mesa de operações dura, fria e desconfortável. Meus braços e pernas estavam imobilizados, minha boca amordaçada por uma fita de metal que machucava um pouco, e meu rosto estava lambuzado por uma gosma azul brilhante, engelhando a pele até quase o ponto de ruptura.
Fiquei assustado. Não era para ser assim. Sempre ouvi dizer que a transcendência acontecia de forma pacífica, indolor. Pelo menos, essa era a propaganda oficial do Controle. Que idiota eu fui em acreditar nisso! É claro que estão apenas interessados em se livrar da maior quantidade de pessoas no menor espaço de tempo possível. Não dão a mínima se o processo é doloroso ou não. Estúpido!
Uma tela flutuante, semelhante a uma antiga chapa de raios-x, desceu sobre meu corpo, ficando paralela a ele cerca de um palmo. Um operador vestindo roupa preta e óculos metálicos de aspecto sinistro entrou na sala e olhou para mim e para o equipamento por alguns segundos, então apertou o botão...
Um frio regelante tomou conta do meu corpo, impedindo qualquer sensação. Depois uma onda de calor subiu dos meus pés até o topo de minha cabeça, e fui sentindo a perda de minha pele, músculos, ossos e cabelo, e testemunhei, para meu horror, tudo se esvair para cima em um tubo prateado, que, por último, escaneou minha cabeça e tratou de desintegrá-la totalmente.
Primeiro há um vazio, um nada, e um frio absoluto. Depois, a primeira coisa que a mente percebe são elétrons rodopiando e dançando de encontro a grandes binárias, compostas por partículas subatômicas. E aos poucos deixa-se levar pela dança, envolvendo nossa matriz energética com as diversas entidades mundo virtual, numa sincronia jamais interrompida.
Não consegui sentir mais nada. Abdicávamos dos sentidos comuns assim que entrávamos no sistema. Olhei para minha mão e pude ver apenas elétrons ocupados em uma dança interminável. Quando tentei tocar minha cabeça, os braços atravessaram-na, dando-me um susto terrível. Eu teria entrado em pânico, se ainda tivesse um sistema nervoso. Ao invés, fiquei estático, adaptando-me à minha nova condição.
Decidi explorar a galáxia de equações, números e pura lógica e flutuei no sistema, logo encontrando velhos amigos que decidiram tomar o mesmo caminho que eu. Seus rostos agora tinham contornos diferentes, e milhões de cálculos circulavam neles. Mas ainda eram os mesmos de sempre. E me receberam como um igual.
FIM