Eu não devia ter vindo aqui.
Mas agora é tarde. Quando vejo já estou em frente a uma porta de madeira-escura envernizada, daquelas antigas que se formos procurar hoje em dia em algum centro comercial encontraremos um número com três zeros.
Respiro fundo, crio coragem e bato três vezes na porta. Depois de um tempo, alguém me atende.
- Pois não?
Suponho que esse seja o mordomo do local, e me pergunto se uma pessoa como meu pai não teria a capacidade de administrar uma casa sozinho.
- Farkle - cumprimento-o, dando um aperto de mão - Farkle Philip.
- Ah... Sim. Seja bem-vindo querido Farkle - ele abre espaço para eu passar - Me acompanhe por favor, o Sr. Philip já está a sua espera!
A casa está diferente da última vez que eu vim aqui, umas duas semanas atrás, quando faltei ao jantar de sábado com meu pai, inventando uma desculpa sobre um guaxinim ter invadido nosso quintal e levado a comida do Billy. A decoração mudou, suponho que essa seja a decoração da semana, e dessa vez, o tema escolhido pela Nancy surpreendentemente parece ter sido escolhido por uma criança, no que parece ser um tipo de decoração chinesa, ou japonesa, não sei dizer, com objetos antigos entrelaçando as casinhas feitas de madeira que estão na mesinha ao lado do sofá. Agradeço por ter ficado com a minha mãe, que é mais minimalista.
Pela sala, já consigo ver meu pai na cozinha que, sério, acho um absurdo ter que ser tão enorme só para três pessoas tomarem um café de vez em quando.
- Filho! - Abre um sorriso largo meio forçado - Como está você? Como está sua mãe? E sua irmã? Vocês estão todos bem?
Conhecendo bem o meu pai eu diria que ele estava pouco se ferrando para como a gente estava, e involuntariamente digo:
- Se você se importasse de verdade estaria com a gente.
Por que diabos eu disse isso? Eu não devia ter acordado a fera interior do meu pai - de novo.
- Filho... - enquanto fala abaixa o tom de voz suavemente - Você sabe que as coisas não estavam sendo fáceis para nós, digo, eu e sua mãe. Eu esperava que logo você fosse compreender isso.
Alguém teria que me explicar o que acabara de acontecer por aqui. O meu pai, Sr. Clark Philip, aquele que há uns meses atrás teria virado de ponta cabeça dentro dessa casa, agora abaixando o tom de voz para mim? Algo estava muito errado aqui, e eu precisava descobrir o que era.
- Tanto faz, eu estou com fome.
- Deixe suas coisas na sala que a Nancy já deve estar a caminho.
- Claro...
De volta a sala esquisita, reparo que muitos quadros foram colocados na parede nessa última mudança - radical - e que na maioria deles estão o meu pai, Nancy, com aqueles cabelos loiro claros sendo soprados pelo vento enquanto se prepara para fazer uma tacada certeira no golfe, e seu filho adotivo, Alex. O resto dos quadros são modelos de capas de vinil dos anos 60. São muitos passeios em família e muito amor que eu não consigo terminar de apreciar. Deixo minha mochila em cima do sofá e volto para a cozinha.
Quando volto, Nancy já está junto ao meu pai contando sobre seu dia corrido no departamento imobiliário. Pelo o que eu entendi, ela foi promovida ao cargo de vice por ter tido a maior pontuação de vendas do mês. Enquanto meu pai finge estar prestando atenção no que Nancy diz, fazendo sons com a boca, eu dou preferência a comida e tento achar a gaveta dos talheres, abrindo uma por uma até encontrar garfos e facas de diferentes tamanhos para diferentes ocasiões. Para mim tanto faz, escolho o maior e vou me servir.
- Não não não garotinho - meu pai segura minha mão enquanto me dá orientações na qual eu sou totalmente contra - Deixe que a Marta cuide disso
- Como? - Estava surpreso - Eu consigo me virar sozinho, com licença.
Meu pai estava mudado, mudado para pior. Seu estilo, seu modo de falar, suas expressões faciais, quase sempre forçadas, mostravam que ele estava fingindo ser quem ele não é. Uma pessoa rica. Uma pessoa importante. Uma pessoa nova. E então eu percebi que ele estava escondido por trás de uma máscara, e isso sem explicações alguma, me deixou sem ar.
Aquela sensação tinha voltado. Era como se alguém tivesse atravessado um ferro em meu peito e feito uma abertura gigante, ao ponto de eu não sentir meu coração pulsando. Eu odeio isso, odeio odeio odeio, sempre vem quando eu menos espero e quando não chamo, quando as coisas estão para pior.
Deixo ele pegar o prato e os talheres da minha mão e me sento.
Lembre-se do que mamãe disse, Farkle - essa voz, a voz da minha irmã soa em minha cabeça sem parar - Relaxar. Inspirar. Conte até cinco. Expire. Relaxar. Inspirar. Até cinco. Expire. Relaxar Inspirar Até cinco Expire Relaxar Inspirar Até cinco Expire Inspirar Relaxar Expire Conte até cinco. Não, não não não isso tá errado muito errado não era pra ser assim não é nessa ordem não não não eu odeio isso por que isso não sai de mim. Por alguns segundos fico sem ar, totalmente sem ar, e quando finalmente consigo inspirar sinto o ar passando pelo meu nariz até chegar aos pulmões, e sinto um leve alívio.
De volta a realidade, meu pai e Nancy conversam sobre sobremesas chinesas e como ficariam boas se os três fizessem juntos, me excluindo totalmente, quando ela se dirige a mim.
- E você, Farkle, o que achou da comida?
Com tudo isso, eu nem encostei na comida, mas teria que ser educado.
Vruum Vruum.
- Merda!
- O que disse?
- Não, Nancy, sua comida está ótima, realmente muito boa, mas é que agora eu preciso ir embora. Tchau.
Deixo-os confusos, mas posso explicar depois.
Emma, você tinha que me escrever justo agora?Emma: Oi, você pode me encontrar daqui 10 minutos no Central Ville? Preciso falar com você.
Eu: Claro, te encontro lá!
Um, dois, três. O pior já passou.
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(Des)encanto
RomanceEm SeaSouth, uma cidadezinha pacata no litoral da Califórnia, vive Farkle Philip, um adolescente de 16 anos privilegiado pelas condições de vida dos pais, que mesmo estando separados e com uma relação não muito boa, se sentem necessários a cuidar ce...