Paraíso Restrito

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Naquele trinta e um de outubro, Amaral acordou no escuro.

Totalmente no escuro.

A cabeça latejou imediatamente depois que os olhos se abriram e, por alguns instantes, ele em nada pode pensar, senão naquele estranho corpo nu, que aos poucos foi reconhecendo como sendo seu.

As pernas dobradas, pendendo para o lado, estavam fracas demais para se esticarem, mas mesmo que não estivessem de nada adiantaria, pois não tinham para onde ir.

Dolorido, exausto e confuso, o homem foi tomado pelo pânico ao perceber a circulação do calcanhar e dos pulsos prejudicada pelas amarras fortes feitas com fita adesiva, a mesma que por sinal lhe tapava também a boca.

Fita larga, brilhante, macia, prateada, que na escuridão ele não podia ver, muito menos tocar, pois seus braços estavam presos atrás das costas.

Mas ele sabia.

A consciência finalmente recobrada o fez tirar forças, sabe-se lá de onde, para tentar se mexer e gritar.

Tarefas árduas para quem estava confinado a um espaço que mal lhe permitia descolar o queixo do peito para buscar um pouco do ar gelado e úmido, que entrava por uma fresta mínima sobre sua cabeça.

Foi então que sentiu o fedor inconfundível da lagoa e teve certeza do que o destino havia lhe reservado para aquela noite.

Não costumava ser tão forte assim, o fedor.

É verdade que cinco anos antes, quando se mudara para a ilha, as águas do entorno já eram poluídas. 

"Imprópria para banho e consumo", as placas espalhadas pela orla alertavam para o óbvio.  

O odor putrefato, no entanto, parecia encontrar um filtro poderoso na mata de mangue que crescia naturalmente nas beiradas lamacentas da ilha e também nas quaresmeiras, pitangueiras, tatarés, orquídeas e jasmins que enfeitavam suas ruelas.

Perfumada era a ilha para todo e qualquer turista que nela pisasse pela primeira vez.

E também tranquila. 

Segura.

Extremamente segura.

Qual o segredo da ilha para se manter tão maravilhosamente resguardada do resto da cidade? , muitos se perguntariam encantados, enquanto bebericavam uma caipirinha de caju em algum dos simpáticos restaurantes com mesinhas sobre deck e vista para a lagoa.

A ausência de carros, claro! ,  os mesmos concluiriam ébrios e felizes, antes de pegarem a balsa de volta para a metrópole violenta e decrépita que os aguardava do outro lado da costa.

Amaral já havia sido um daqueles turistas abobalhado que de vez em quando aportavam por lá para respirar o ar puro, admirar as florezinhas nas ruas, os passarinhos no céu, as garças à beira d'água.

Depois de perder tudo para três homens armados em um sequestro relâmpago na cidade, entretanto, decidiu que queria recomeçar a vida ali, naquele lugar feito para se passar as férias.

Não foi tão fácil, porém.

Não era para qualquer um.

Morar na ilha.

Quem consegue morar em um lugar que não tem acesso a carros, não é mesmo?

Muita gente.

É claro que não era essa a questão, mas por alguma razão, aquela restrição aos carros há anos vinha servindo de justificativa para muita coisa por lá.

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