Coração Negro

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Você pode me chamar de Fortuce. Não espero que goste. Honestamente, não dou a mínima. Nunca fui alguém de trato fácil, mas, por precaução, peço que não se afeiçoe a mim. Existe uma tendência de se gostar dos canalhas, especialmente quando os vemos à beira do abismo. Um erro imperdoável.

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A primeira vez que entrei na mansão Carter foi em novembro de 1946. Ficava em Santa Mônica. Na época, destacava-se por seus pilares dóricos e por sua enorme porta de entrada, por onde poderia passar uma manada de elefantes indianos. Fora construída com a renda do comércio ilegal de bebidas, diziam, mas isso não era da minha conta.

Eu tinha sido chamado pelo proprietário, o Sr. Carter, um homem na casa dos setenta anos. Ele me esperava em seu escritório particular, uma sala repleta de livros, retratos e pinturas, tudo organizado em um espaço maior que o apartamento em que eu vivia a quilômetros dali, no centro de Los Angeles.

Em meio às estantes que alcançavam o teto, o Sr. Carter estava sentado em uma poltrona de couro. Tinha as pernas cruzadas, as costas retas e as mãos entrelaçadas em frente ao queixo, a imagem de um negociante sagaz.

“Sei que você é discreto, Fortuce” – disse ele, em um tom mais baixo do que o normal, querendo me adular. Seu rosto era comprido, ornamentado por rugas e por um bigode fino. O nariz era pequeno e a cicatriz próxima à boca fazia pressupor uma história interessante.

“O que quer de mim, Sr. Carter?”, perguntei secamente.

Ele me ofereceu uma dose de brandy e pediu que eu relaxasse.

“Também não gosto de conversa fiada”, disse ele.

Era viúvo. Havia se casado novamente há pouco tempo com uma mulher quarenta anos mais nova. Não era segredo. A notícia saíra em todos os jornais, um desses escândalos sociais inaceitáveis cujos detalhes todo mundo quer saber.

“Meu filho Thomas foi raptado”, disse, enfim, a expressão dura como um manequim de cera.

O rapaz era fruto do primeiro casamento. Estava com quinze anos. Desaparecera há duas semanas.

Não havia emoção na voz do Sr. Carter à medida que me passava os detalhes. Seus olhos estavam embaciados, seguramente em outro lugar, mas o relato mais parecia uma história de rádio narrada com tédio. Ou porque ele já a havia repetido várias vezes, ou porque se tratava de um discurso ensaiado.

Deixei-o falar, sorvendo a bebida. Observei-o por um instante pelo fundo do copo. O desenho distorcido de sua expressão lembrava um quadro de El Greco.

“Alguém fez contato?”, perguntei, seguindo o roteiro do manual os detetives. Naturalmente esperando a pergunta, o Sr. Carter esticou a mão ossuda na minha direção, oferecendo-me um envelope escuro. Abri e olhei rapidamente o conteúdo. Mensagens escritas com letras recortadas de jornais diziam que o jovem Thomas estava bem e que em breve seria feito contato. Em todo caso, a polícia tinha que ficar de fora, sob pena de execução sumária do garoto.

Enquanto eu analisava o material, o Sr. Carter me disse que de todo modo jamais chamaria a polícia. “Não posso confiar em quem aceita subornos tão baixos”, sentenciou, com a entonação amargurada de quem sabe o que está falando.

Esmaguei o cigarro num cinzeiro de prata e apanhei meu chapéu. Toquei a aba à guisa de um cumprimento e disse que era tudo o que eu precisava saber por ora. Ele não se preocupou em levantar ou mesmo em dizer até logo.

Quando me encaminhava para a saída da casa, deparei com a Sra. Carter. Era uma mulher de trinta e poucos anos. Mais ou menos como eu, na época. Tinha a expressão típica de quem está acostumada a ser obedecida. Seu rosto era redondo e os olhos castanhos eram levemente amendoados. O cabelo era comprido, ondulado, e refletia as luzes do corredor. A boca entreaberta, com o lábio inferior cheio e carnudo, lhe emprestava um ar de suposta fragilidade. Alta, esguia e forte, mas com uma carência latente, era uma mulher por quem valeria a pena entrar numa briga de bar.

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⏰ Última atualização: Nov 05, 2014 ⏰

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