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Eu tinha oito anos quando sussurrei para mim que a tristeza era parte de ser criança.
Eu tinha oito anos quando sussurrei para mim que gritar era parte de ser adulto. Que o álcool era o típico cheiro paternal e o sangue seria a única emoção interior que eu veria no rosto da minha mãe.
Eu tinha oito anos quando sussurrei para mim que chorar todas as noites era parte de crescer.
Eu tinha oito anos quando sussurrei para mim que a dor é apenas um sonho sentido e que a podemos ignorar, mas nunca esquecer.
Eu tinha oito anos, mãos cortadas pelo couro e uma voz sofucada de cansaço e medo. Os meus pés pisavam a madeira fria onde reluzia a madrugada, dos meus lábios escorria chuva, da minha língua brotava sal. Os meus olhos estavam turvos como a água dos poços sem fundo.
Eu ouvia os gritos, os estilhaços, as vozes misturadas com a embriaguez.

A minha cabeça doía.

Eu via o sangue, a garrafa de vinho barato... Ou o que sobrava dela presa entre os dedos dele...

O meu coração acelerava, dos meus dedos escorriam gotas de orvalho que se misturavam com as gotas de vinho espalhadas pelo chão, os gritos ecoavam na minha cabeça e eu sentia-me desvanecer no tempo como as cinzas que queimavam no chão como um mecanismo de destruição própria.

Eu levantei-me, desvinculando-me daquele pedaço de casa que me protegia, sentia o meu corpo frio e fraquejado, aproximei-me do barulho e dos vidros que eram envolvidos pela embriaguez de um homem cruel. Aquele olhar vidrado de álcool que viajava nas pupilas atravessou a minha pele e queimou o meu interior, eu levantei as mãos com o meu olhar preso naquele rosto ébrio e deixei que fios de água o envolvessem num sentimento pávido. Os gritos saiam da boca num tom sôfrego por clemência que eu escolhi desprezar...Eu tinha oito anos quando tirei vida a meu pai, afogando-o com as ondas do meu interior que encheram os seus pulmões de tudo menos ar. Os gritos aos poucos deram lugar ao pesado silêncio de um batimento cardíaco que se decipou no ar num último suspiro.

O meu corpo gritava de dor, na minha cabeça ouvia o som da morte onde a minha alma dançava repartida até pousar nas costas da escuridão como velhos amigos. Sentia o meu sangue escorrer pelos meus dedos e as feridas ardiam ao toque da água salgada. As minhas pernas cederam contra ao chão e junto aos meus joelhos estava a boca de lábios cortados de onde escorriam gotas de água manchadas de sangue, a única cor existente vinda de um corpo sem vida. Senti as mãos quentes da minha mãe nos meus ombros e a testa dela colada a minha nuca, o meu corpo relaxou, sentindo-se acolhido.

- Temos que partir.

Disse baixinho, junto ao meu ouvido, com uma voz maternal que dançava em campos de flores ao pôr do sol, olhei dentro dos seus olhos escuros que eram acompanhados por um frágil sorriso doce, eu concordei, em silêncio.

E ali, naquela casa, deixei registada a minha primeira morte.

***

Os meus olhos ficaram mais escuros do que nunca, como o mar rebelde que engole os marinheiros, fechados, não deixando transparecer a ressaca que em mim habita, o fumo faz arder os meus pulmões enquanto álcool escorre lentamente pela minha língua. Sentada num local qualquer, estou eu, longe do drama impregnado nesta sociedade de escárnio e degradação. Onde habita a sede por poder e aniquilação, onde tudo que dizem ser belo não passa de uma ilusão. Mas também eu sou digna de imperfeições cravadas na minha pele, também fujo de algo como todos estes corpos que deambulam, vidrados, perdidos. . .

E esta música trovadoresca que arranha o meu interior, citando louvores que eu finjo não me serem nada, perdida entre as dobras da minha capa, agarrada a mais uma taça que queima a minha garganta, fazendo-me querer evaporar. Uma moeda faço estalar na madeira viscosa de bebidas derramadas, que pingam em gotas desleixadas em direção ao chão, levanto-me do fundo da taberna e caminho entre os bêbados que riem de tudo, sobretudo das desgraças deste mundo. Movimentando-me entre os corpos sedentos de álcool e sexo que chafurdam em palavras eufóricas os seus mais impuros desejos.

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⏰ Última atualização: Sep 04 ⏰

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