Capítulo Único

34 1 2
                                    

Como aquela gravidez foi desejada. Paulo e Alice mal cabiam dentro deles mesmos, de tanta alegria, quando descobriram que seriam pais.

Paulo ficou responsável por ir buscar o exame de sangue que confirmaria se Alice estava grávida. Ao ler POSITIVO, no resultado do exame, o rapaz sentiu uma alegria tão grande, uma euforia tão intensa, que saiu na rua todo perdido e quase foi atropelado. Pobre bebê, já ficaria órfão de pai tão cedo.

A gravidez foi tranquila e no quarto mês descobriram que seriam pais de uma princesinha. Eles prepararam tudo com muito carinho e escolheram o nome dela: Helena.

Helena era apressada e quis nascer de oito meses. Quando a pequena nasceu, seus pais perceberam que havia algo diferente com ela. Eles não sabiam explicar o que era, mas sentiam um certo desconforto ao olhar para os olhos dela.

À medida que a criança crescia, o problema aumentava. Algumas pessoas tapavam os olhos de seus filhos ao passar por ela, outros olhavam feio e ainda tinham aqueles que desviavam o caminho. A maioria dos pais da vizinhança não deixava os filhos brincarem com Helena.

Ainda assim, com as crianças Helena não tinha problemas, mas era só um adulto aparecer, que tudo ficava muito complicado.

Até seus pais, muitas vezes, se sentiam profundamente incomodados ao olhar para a garota, mas nessas horas o amor acabava falando mais alto. Os pais, tentando protegê-la, começaram a evitar, pouco a pouco, que ela saísse de casa.

Isso funcionou por um tempo, mas fazia a pequena Helena muito infeliz. Ela não entendia porque tinha que ficar afastada das outras crianças, se eram os adultos que agiam estranho perto dela. Mesmo com todas as dificuldades, Paulo e Alice acreditavam ter tomado a melhor decisão.

Mas logo chegou o tempo de Helena ir para a escola.

O sofrimento da menina começou logo nos primeiros dias de aula. Os pais eram chamados com frequência para ouvir como a menina, de apenas quatro anos, afrontava as autoridades da escola. Ninguém nunca sabia explicar o porquê, mas olhar para Helena causava desconforto em todos os funcionários.

A mesma relação com os vizinhos se repetia na escola, com as outras crianças Helena convivia bem, mas com os adultos... Ah! Com os adultos tudo era mais complicado.

Passado alguns meses a direção da escola chamou Alice, para lhe dizer que a filha não estava se adaptando, que seria interessante procurar um tratamento especializado e, quem sabe, uma outra escola. Alice aceitou o conselho. Afinal, Helena sofria com a forma como era tratada naquele local.

Procurou atendimento psicopedagógico, terapêutico e até religioso. Mas o resultado era sempre o mesmo. Em maior ou menor grau, todo adulto sempre dava um jeito de afastar-se da pequena Helena. E sempre diziam que a culpa era do comportamento da garota.

Na nova escola, um novo choque. No primeiro dia de aula, a menina de quase cinco anos, foi colocada para fora da sala, pela professora, que dizia aos berros, que ela era "mal-educada e impossível".

A mãe pegou a garota na hora da saída, que chorava e dizia: "Mamãe, eu não quero mais ir para escola. Eu sou má, mamãe. Eu sou feia."

Não poderia haver golpe pior para o coração de uma mãe.

À noite a família se reuniu ao redor da mesa. Os pais pensaram em tudo o que já havia acontecido, no quanto a menina já havia sofrido, mesmo com tão pouca idade. E também em tudo o que já tinham tentado, sempre sem sucesso. Chegaram juntos a uma decisão: o mundo teria de aceitar Helena, assim como eles aceitavam.

No dia seguinte, voltaram com a pequena Helena à escola e exigiram da direção os relatórios da professora, explicando o que de tão terrível a menina fizera, para receber aquele tratamento no dia anterior. Após muitas informações desencontradas, a escola chegou à conclusão de que tudo não passou de um mal entendido.

A família voltou a frequentar ambientes públicos, parques e a passear com a menina. E cada vez que alguém se mostrava agressivamente incomodado, os pais enfrentavam a pessoa, perguntando exatamente o que a menina tinha feito.

Pouco a pouco, Paulo e Alice começaram a entender qual era o problema da pequena Helena. Ela havia nascido com olhos de espelho. As pessoas viam, refletidos nos olhos da criança, suas próprias almas, suas fraquezas, seus pecados. Só podia ser isso! Até eles mesmos se sentiam assim e, ao olhar a bela filha, lembravam de suas próprias misérias.

Quanto mais Helena era vista, quanto mais os pais lutavam para ela poder conviver com as outras crianças, mais ela passava a ser aceita. Não era um caminho fácil, exigia dedicação e paciência dos pais e, principalmente muita conversa e coragem da pequena Helena, a cada dia.

Mas o ser humano e a vida em sociedade não são simples. Um grupo de pessoas resolveu que não podia aceitar seus filhos convivendo com aquela criança, que os fazia se sentirem tão culpados de seus próprios erros e se juntaram, e foram até a Prefeitura da cidade exigir que algo fosse feito para resolver aquele problema.

Mas o ser humano é bom e coerente, apesar de não ser simples. Um outro grupo soube dessa ocorrência e procurou a família da pequena Helena, para oferecer apoio, e foram até as autoridades ponderar que uma criança não poderia ser considerada um problema apenas por ser quem era.

Houve um impasse. A confusão se fez. A discussão se acalorou. As pessoas se ofendiam e se atacavam naquele Paço Municipal. A Guarda Civil tentava manter a ordem e a segurança. Tudo indicava que aquele momento terminaria numa tragédia sem precedentes para a cidade.

Quando então Paulo entrou com Helena nos braços. A menina chorava e perguntava para o pai o porquê dela ter nascido um monstro e fazer as pessoas agirem daquela forma. Todos começaram a olhar para a menina e aquele incômodo que sentiam começou a se transformar em vergonha. A vergonha se transformou em um outro tipo de incômodo, um incômodo lá no fundo do coração.

As pessoas começaram a perceber, ao olhar para Helena, que suas ações repercutiam na vida dos outros e, ao mesmo tempo, que só elas eram responsáveis pelas próprias ações. Pouco a pouco foram se retirando daquele local, de cabeça baixa e em silêncio.

Quem me contou essa história disse que isso tudo já aconteceu há muitos anos. Que a pequena Helena, hoje é a prefeita daquela cidade e que, aquela cidade desconhecida, hoje é modelo para todo o mundo. Porque lá as pessoas aprenderam a transformar o incômodo que sentem por si mesmas e pelo outro, em força para melhorar o mundo, com respeito.


A menina com olhos de espelhoWhere stories live. Discover now