PROLOGO

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Chauncey estava com a filha de um lavrador na relva às margens do rio Loire quando atempestade se aproximou. Por ter deixado sua montaria perambular pela campina, ele nãotinha opção a não ser voltar para o castelo com os próprios pés. Arrancou uma fivela de pratado sapato, colocou-a na palma da mão da moça e observou enquanto ela se afastava correndo,a barra das saias imunda de barro. Em seguida, calçou as botas e partiu para casa.

A chuva desabava pelos campos cada vez mais escuros nos arredores do Château de Langeais.Chauncey caminhava com segurança sobre os túmulos afundados e as folhas podres docemitério. Mesmo na neblina mais espessa ele conseguia achar o caminho de volta, e não tinhamedo de se perder. Não havia neblina naquela noite, mas a escuridão e a crueldade da chuvajá criavam dificuldades suficientes.

 Chauncey captou um movimento com o canto do olho e voltou bruscamente à cabeça para aesquerda. O que à primeira vista parecera ser uma enorme estátua coroando uma sepulturapróxima ergueu-se majestosamente. Não era feita nem de pedra, nem de mármore. O garototinha braços e pernas. O peito estava despido, os pés, descalços, e calças de camponêspendiam abaixo da cintura. Ele desceu da lápide com as pontas dos cabelos negrosencharcados pela chuva pingando. As gotas desciam por seu rosto, que era tão moreno quantoo de um espanhol.

 A mão de Chauncey dirigiu-se ao punho da espada.

 — Quem está aí?

 A boca do jovem esboçou um sorriso.

 — Não brinqueis com o duque de Langeais — avisou Chauncey. — Perguntei seu nome..Dizei-o. 

— Duque? — O rapaz apoiou-se no tronco sinuoso de um salgueiro. — Ou bastardo? —Chauncey desembainhou a espada.

 — Retirai o que dissestes! Meu pai foi o duque de Langeais. Eu agora sou o duque deLangeais — acrescentou, amaldiçoando-se pela maneira desajeitada como dizia aquilo.

 O jovem sacudiu a cabeça devagar.

 — Vosso pai não era o velho duque.

 Chauncey enfureceu-se diante de um insulto tão ultrajante.

 — E nosso pai? — questionou, estendendo a espada. Ainda não conhecia todos os seusvassalos, mas estava aprendendo. Guardaria na memória o sobrenome do rapaz. — Vouperguntar mais uma vez — disse em voz baixa, passando a mão no rosto para tirar a água dachuva. — Quem sois vós

 O jovem aproximou-se e afastou a lâmina para o lado. Subitamente, parecia mais velho do queChauncey supunha, talvez até mesmo um ou dois anos mais velho que o próprio Chauncey.

 — Sou da prole do demônio — respondeu. Chauncey sentiu uma onda de medo invadi-lo.

 — Vós sois completamente lunático — disse entre dentes. — Saí de meu caminho.

 O chão cedeu sob os pés de Chauncey. Chamas douradas e vermelhas apareceram diante deseus olhos. Encurvado, com as unhas fincadas nas coxas, ele elevou o olhar para observar ogaroto, piscando e arfando, esforçando-se em compreender o que se passava. Sua mentevacilava como se não estivesse mais sob seu controle.

 O rapaz agachou-se para que seus olhos ficassem na mesma altura dos de Chauncey.

 — Escutai com atenção. Preciso de um favor vosso. Não partirei até conseguilo. Vós mecompreendeis?

 Rangendo os dentes, Chauncey sacudiu a cabeça para exprimir descrença — e desafio. Tentoucuspir no jovem, mas a saliva escorreu pelo queixo. A língua recusava-se a obedecer-lhe. 

O jovem envolveu as mãos de Chauncey nas suas. O calor era causticante e o duque soltou umgrito.

 — Preciso de vosso juramento de fidelidade — disse. — Ajoelhai e jurai ser meu servo. 

Chauncey quis soltar uma gargalhada grosseira, mas sua garganta se fechou e o som foisufocado. O joelho direito dobrou-se como se tivesse recebido um chute por trás, mas nãohavia mais ninguém ali. Chauncey desabou na lama. Virou-se de lado e vomitou.

 — Jurai — repetiu o rapaz.

 O calor queimava o pescoço de Chauncey. Ele precisou de toda a sua energia para cerrarlevemente os punhos. Riu de si mesmo, mas não havia graça. Não sabia como era possível,mas a náusea e a fraqueza que o dominavam provinham do jovem. Não se livraria daquilo senão prestasse o juramento. Ele diria o que precisava dizer, mas jurou no fundo de seu coraçãodestruir o jovem para se vingar da humilhação.

 — Senhor, torno-me vosso servo — disse Chauncey, malignamente. O rapaz pôs Chauncey depé.

 — Encontrai-me aqui no início do mês hebreu do Cheshvan. Precisarei de vossos serviços nasduas semanas entre a lua nova e a lua cheia.

 — Quase uma... quinzena? — O corpo inteiro de Chauncey tremia sob peso de sua ira. — Souo duque de Langeais!

 — Vós sois um nefilim — disse o jovem com um meio sorriso.

 Chauncey tinha um xingamento na ponta da língua, mas o engoliu. As palavras seguintes forampronunciadas com fria perversidade.

 — O que acabastes de dizer?

 — Vós pertenceis à raça bíblica nefilim. Vosso verdadeiro pai foi um anjo expulso do céu.Metade de vosso sangue é mortal — os olhos escuros do rapaz se ergueram, encontrando os deChauncey —, metade é de anjo caído. 

Das profundezas de sua mente, Chauncey voltou a ouvir a voz de seu tutor, lendo trechos daBíblia que falavam de uma raça degenerada, fruto da união carnal de anjos expulsos do céu emulheres mortais. Uma raça temível e poderosa.

 Um arrepio que não era inteiramente de repulsa atravessou Chauncey.

 — Quem sois vós? 

O rapaz se virou e começou a se afastar. Embora Chauncey quisesse segui-lo, não conseguiuobrigar as pernas a aguentar o próprio peso. Ajoelhado ali, com os olhos fustigados pelachuva, viu duas cicatrizes largas nas costas nuas do jovem. Elas se aproximavam, formandoum V de cabeça para baixo.

 — Vós sois... caído? — perguntou. —Tivestes as asas arrancadas, não?

 O rapaz, anjo, seja lá quem fosse, não se virou. Chauncey não precisava de uma confirmação.

 — O serviço que vos devo prestar — gritou —, exijo saber do que se trata!

 O riso grave do jovem ecoou pelo ar.

Sussurro 01Where stories live. Discover now