(Des)esperança

15 3 0
                                    

Nada. Zero. Nulo. Neutro. René disse que as árvores frutíferas desse bosque estavam cobertas de frutos. Pelo jeito, mais pessoas souberam isso antes de mim. Merd. Vim até fora da cidade à toa. Bom, melhor pegar minha bicicleta e voltar para o abrigo. Essa nuvem de poeira está rasgando a minha pele.

Às vezes me pergunto se vale a pena continuar tentando sobreviver ou se é melhor mergulhar no rio Rhône e esperar que a morte venha me buscar, como minha mãe fez.

Passo pelo Tete D'Or, pela Garibaldi, viro na direção da ponte que leva até a Fouvrière e vejo, ao longe, no horizonte, o antigo hotel de La Part-Dieu em pedaços e na iminência de vir abaixo algum dia. Ainda assim, alguns amigos fazem de lá a sua morada. Ah, Lyon... E pensar que você era uma das maiores cidades da França. Com certeza já viu dias melhores.

Chego em meu abrigo na antiga estação de metrô de Gare de Perrache. Lugar disputado, afinal tem vários pontos cobertos para nos proteger das chuvas ácidas e das tempestades de poeira. Tiro os óculos de natação, a bandana que protegia nariz e boca e tomo um gole do pouco de água que me resta no cantil. Para comer, apenas duas maçãs e um pacote de biscoitos salgados que provavelmente está vencido desde o ano passado. Me olho no pedaço de espelho sujo que peguei do depredado banheiro feminino. Mal me reconheço. Magra, desnutrida, olhar fundo. Meus cabelos, antes loiros, agora parecem ter pegado a pigmentação das nuvens de poeira. Que vida. Que vida?

Deito num colchão improvisado e reflito sobre o que "vida" representa para mim no mundo atual. Para me distrair, brinco de abrir e fechar o isqueiro de metal que era da minha mãe. Gosto de ver a chama surgir e sumir em fração de segundos, como se fosse algo sobrenatural. Fico imaginando o que farei quando acabar o combustível dessa joça.

- Virginie! Não está nua, está?

A voz brincalhona me é conhecida. Jean-Paul. Meu namoradinho da época de colégio. Talvez o único homem por aqui que não queira me molestar enquanto durmo. Mesmo nesse cenário caótico, está sempre de bom humor. Como ele consegue?

- Pode entrar, Jean! - o chamo para dentro do barraco.

Ele entra com seu corpo esguio, desengonçado, e quase bate com a cabeça no teto. Está com um sorriso malicioso, o que normalmente indica que aprontou ou aprontará alguma presepada. Olho para ele com uma sobrancelha levantada e os braços cruzados.

- O que você fez?

- "O que eu fiz", não! - respondeu, com um risinho. - O que NÓS vamos fazer!

Rápido como um mágico fazendo um truque de cartas, ele tira um relógio dourado de dentro do seu casaco. Parece autêntico. Meus olhos brilham.

- Onde você conseguiu isso? - pergunto, extasiada, com um sorriso que poucas vezes abri desde que tudo aconteceu. Pego o relógio da sua mão e examino a beleza do artefato. Vale dinheiro. Muito dinheiro.

- Encontrei dentro de um Porsche estacionado lá em Gerland.

Olho com incredulidade. Qualquer Porsche estacionado nos arredores de Lyon - e talvez de qualquer lugar da Europa - já teria sido depenado nos primeiros dias depois do "Big Boom". Jean-Paul me olha encabulado e coça o cavanhaque.

- Tá bom, tá bom... Eu peguei de um cara perto de Parilly - assume, com ar de culpado.

- Você foi até Parilly? – pergunto, embasbacada. É longe. Muito longe.

(Des)esperançaWhere stories live. Discover now