Capítulo IX ○ Jaebeom

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Meu pai foi um bom pai, quer dizer, tirando toda a parte do álcool e do cigarro, ele sempre fez o que pôde para me dar do bom e do melhor, sempre sacrificando horas do dia indo pra um trabalho chato, em um escritório chato no meio de seoul, tudo pra que no final do mês ele ganhasse uma merda de salário que mal dava pra pagar as contas e me dar de comer. E mesmo assim, mesmo com todas as dificuldades, ele nunca, nunca mesmo, reclamou.

Ele era a pessoa mais grata que eu já conheci na vida, sempre agradecendo pelas coisas que o mundo nos dava, sempre sendo gentil, amável, uma pessoa incrível. Ele tinha tantos amigos, amigos de verdade, não daqueles que somem quando você precisa, mas daqueles que ficam quando uma merda acontece, porque te amam muito e só querem te ver bem. Ele era o tipo de pessoa que eu queria ser quando crescer, mas como eu já disse, só quando tirava a parte do álcool e do cigarro.

Eu não sei em que momento da minha vida ele começou a beber, talvez no ano em que minha mãe nos deixou, quem sabe um pouco antes disso, nos dias em que as brigas eram frequentes e os gritos sempre aconteciam, eu não sei. Mas em algum momento durante essa época, tanto faz se no começo ou depois, ele passou a demorar muito para chegar em casa, as vezes nem chegava, e quando chegava, sempre esbarrava nas paredes do corredor, ou então tropeçava no vento, xingando embolado e vomitando no chão. Eu não sei quando, realmente não sei, mas em algum momento da vida, meu pai se perdeu. 

O cigarro foi efeito colateral, ele bebia e fumava, porque era isso que as pessoas do bar onde ele frequentava faziam, mas no começo era só por diversão, ele fumava apenas cigarros aleatórios que pessoas davam para ele durante a bebedeira. Com o tempo, depois que o álcool virou um vício, ele passou a fumar quando estava sóbrio também, e não era mais por diversão, era por prazer, puro prazer. Depois disso foi questão de tempo até que fumar se tornasse um vício também.

Ele fumava uma carteira de cigarros por dia, era quase uma chaminé humana, e eu nunca entendi como o pulmão dele aguentou por tanto tempo, até ele brincava sobre isso as vezes também. A bebida era um pouco menos frequente, ele fumava muito mais do que bebia, e ele nunca bebia quando estava trabalhando, era um dos alcoólatras mais lucidos que eu já conheci, não que eu tenha conhecido muitos na minha vida.

E diferente do que todo mundo pensa, até minha tia e os amigos dele e tenho certeza que minha mãe também, meu pai procurou sim ajuda, ele percebeu que precisava e eu nem precisei falar nada, ele fez isso sozinho. Ele tinha começado no AA dois meses antes de ser internado as pressas, tinha parado de fumar no mesmo dia em que começou o AA também. Mas era o pulmão, acho que estava acostumado com a fumaça, porque assim que ela parou, ele começou a parar também, ele aguentou por muito tempo, mas então ele desistiu.

E antes de entrar em coma meu pai fez piada sobre isso, dizendo que o pulmão era mais viciado do que ele, e nós rimos, rimos muito mesmo, e ele disse que sentiria muita falta das pessoas do AA, me fez prometer que de vez enquento eu iria aparecer por lá pra dar uma força para o pessoal que ficou, porque eu era o único que sabia da existência deles. Eu me recusei a prometer isso no começo, disse que ele mesmo faria isso, mas ele disse que não, que não ia conseguir, e ele estava certo, infelizmente.

Era eu quem estava no quarto com ele quando o coração parou, os médicos disseram que isso aconteceria logo, por isso eu fiquei lá. Queria aproveitar o quanto eu pudesse com ele, cada minuto era valioso, porque eu sabia que depois que a máquina fizesse um pi contínuo, eu nunca mais poderia ficar próximo a ele de novo. Nunca mais ouviria sua voz, nunca mais abraçaria seu corpo. Quando o pi viesse, ele iria embora, e saber disso doía, doía como o inferno.

Até tentaram reanimar ele, tentaram fazer o máximo que puderam pra salva-lo, e por um momento eu senti esperança, pensei que ele voltaria, que ele iria pegar os últimos resquícios de vida que ele tivesse dentro de si e tentaria voltar pra mim. Mas ele não voltou, ele nunca vai voltar, e quando a equipe médica veio até mim, quando disseram o "sinto muito, mas ele não resistiu", a única coisa que eu consegui fazer foi sentar no chão e chorar. Chorar porque agora eu estava sozinho, chorar porque meu único amigo foi embora, chorar porque eu estava com medo, chorar, porque chorar era a única coisa que eu conseguia fazer.

E depois, quando minha tia apareceu no fim do corredor com umas roupas limpas dentro de uma sacola e me viu sentado no chão, completamente quebrado, ela desabou de joelhos, como se suas pernas não aguentassem o peso de seu corpo, e chorou também, porque tinha entendido o que tinha acontecido mesmo sem eu dizer. E eu apenas fechei meus olhos e fingi que não estava acontecendo nada, que tudo era um fruto da minha cabeça, que eu estava sonhando, que nada daquilo era real e que quando eu abrisse os olhos meu pai estaria aqui de novo, se arrumando no sábado de manhã pra ir para o encontro com o AA, antes de voltar pra casa e me levar pra tomar sorvete. Fechei os olhos porque fazer isso me deixava melhor, fazer isso trazia meu pai de volta, fazer isso me impedia de sofrer.

E quando minha tia se recuperou e veio até mim, e me abraçou e disse que ficaria tudo bem, mesmo que nem ela soubesse se ia mesmo, eu apenas continuei com os olhos fechados. E acho que continuo com os olhos fechados até agora, acho que vou continuar com os olhos fechados para sempre, porque ficar de olhos fechados faz a dor parar de doer, faz meu mundo ter cor de volta. Ficar de olhos fechados faz meu pai morto reviver.

Blind • 2Jae (HIATUS) Onde histórias criam vida. Descubra agora