PESTE BRANCA
(N.E. - A gula é um pecado capital, e seu demônio mais aproximado é Belzebuth, ou Baalzebub, ou só Baal. Também conhecido como Senhor das Moscas.)
Meu mundo acabou várias centenas de anos depois que o mundo dos homens havia também encontrado seu fim. Uma grande catástrofe, a estrela Sol explodiu e varreu mais da metade de nosso planeta. Não houve tempo para preparativos. Tudo o que era vivo morreu, e tudo o que não era tornou-se inútil. Os poucos homens que sobreviveram esconderam-se debaixo da terra, em imitações sofríveis das condições de vida de outrora. O planeta dava seus suspiros finais, enquanto os homens ainda insistiam em viver em terminais subterrâneos espalhados por sua crosta. Estes terminais eram na verdade bunkers interligados entre si, instalados em cada país, capazes de salvar e proteger um limitado número de pessoas durante um limitado período de tempo.
Meus pais morreram quando eu ainda era bem pequena. Hoje tenho quinze anos e não me lembro mais de seus rostos. Somos descendentes de pessoas que foram importantes no mundo pré-apocalíptico, e por isso temos acesso a coisas que os demais não têm. Eu sou provavelmente a ultima pessoa que ainda sabe ler nesta sociedade. Não consigo compreender como as pessoas sob a terra conseguem viver um dia após o outro. Nem porque elas o fazem. Não somos mais nem sombra da sociedade de outros tempos. Apenas retratos pálidos enegrecidos pela sujeira e imundície de nossas vidas. Os terminais perderam há muito tempo a capacidade de sustentar a vida. Nossa única fonte de alimentação são os ratos, que, pelo que soube, hoje são totalmente diferentes do que eram antes da destruição do planeta.
Não há enterro. Os mortos são jogados em um galpão comum onde os ratos se banqueteiam e nós caçamos. O sangue pútrido que jorra de seus corações é tudo o que temos para beber, e ainda que isso seja uma sentença de morte, a outra opção é ainda mais desagradável. Não há água para banho, nem mesmo a noção de higiene. Nossas peles são brancas, nossos corpos são magros e desnutridos, nossos olhos e cabelos são tão alvos que parecem um só com a pele. É difícil notar a diferença entre homens e mulheres, e a cópula é um ato tão desagradável, sujo e nojento, que os homens praticam com as crianças e jovens, como eu, antes de nos tornarmos imundos demais.
Eu não aceito isso. Não serei fornicada por estes animais. Não pretendo ter filhos e prorrogar o sofrimento desta raça sem propósito. Gostaria, do fundo de minha alma, que todos tivessem morrido no Acidente, e que eu não tivesse que fazer parte desta desgraça total.
Meu nome é Allaya Davenvoort e infelizmente tenho base de comparação para dizer o que poderia ser melhor ou pior do que esta vida que vivemos. Meu bisavô dizia que eu era muito especial. Contou-me histórias que ele ouviu de seus antepassados, que também ouviram de seus antepassados, de como era o planeta antes do Acidente. Histórias que me enchiam de ódio e mágoa, pois nunca fiz e nem farei parte daquela magia há muito perdida. Não sei como as coisas vivas que meu bisavô disse que vira em um livro antigo. Não consigo conceber a idéia de coisas que voavam livres no céu, até porque eu jamais vi o céu. Jamais vi o tal Sol, que segundo fui informada, ainda é possível ser visto sobre a superfície devastada do planeta Terra. Meu ódio me alimenta mais do que a carne podre dos ratos. Ao contar-me sobre o passado, creio que meu bisavô tenha tentado me imbuir de sonhos. Talvez ele acreditasse que um dia poderíamos voltar a viver na superfície.
Mas eu não. Não aquela escória maldita que vivia nos subterrâneos. Vivi toda minha vida no terminal de Juteland, onde compartilhei o parco espaço com mais de duzentas pessoas, inclusive aquelas crianças que cresceram comigo, mas só eu tinha conhecimento sobre o que fora o mundo lá fora, e só eu tenho um olhar diferente sobre o que somos hoje. E apenas eu ousei sair sozinha em busca de uma nova vida.