Boiava um barquinho no meio do mar, transportando um único corpo que, no momento, estava inanimado. Sísifo (como o do mito) era o nome do homem desacordado dentro da embarcação, e o pequeno barco era chamado de Cruzeiro.
Não havia terra à vista, nem pássaros, apenas azul refletindo azul. Céu e mar misturando-se no horizonte. Entretanto, com o sol começando a castigar em excesso as suas costas, o homem adormecido desperta de supetão. Lá está ele. Lá vai ele. Um tapete transparente guiando o Cruzeiro a lugar a nenhum.
Havia semanas que sua situação não mudava; vivia cada dia da mesma forma, discutia com o sol, seu torturador, e matutava com lua, sua amante, sem nunca ouvir outra voz que não a sua. Porém, naquele dia, com o corpo fatigado e a mente exaurida, ouviu um cantar distante. Fraco de início, mas que ficava cada vez mais alto, profundo e triste.
De súbito, ele percebeu massas negras se mexendo no limite da visão. Mesmo longe, eram imensas e, apesar disso, não perturbavam a plenitude da superfície da água. Sísifo olhou em volta, buscando por instinto qualquer forma de ajuda, mas tudo o que tinha era Cruzeiro e uma ossada de peixe esquecida de noites atrás.
O canto passou de triste para ameaçador e, pela primeira vez, parecia recheado de palavras. As vozes falavam sobre ódio, amor, felicidade e dor. Principalmente dor. Mesmo com tanto tempo em alto mar, o suficiente da sua sensatez havia sobrado para saber que nada que vive em baixo d'água poderia falar. E quando se deu conta, Sísifo estava a dois palmos de distância de duas grandes "coisas" que o encaravam.
Inutilmente, lançou os ossos de peixe na figura da esquerda. Não havia o que fazer, então resolveu esperar e encarar os titãs que também pareciam observá-lo. De repente, o canto parou, e um tentáculo convidou Sísifo a entrar na água. Um movimento leve, sem corromper a lisura irregular do oceano.
Vozes saltaram em sua mente. Vozes conhecidas, no entanto esquecidas que o faziam pensar: afinal, não havia esperança mesmo. Fazia muito tempo que esperava alcançar terra firme, e não suportava mais matar sua fome com peixes crus que raramente encontrava. Ele queria aceitar o convite. De repente, as memórias entraram em sintonia, e reconheceu sua mãe à esquerda e seu irmão à direita. Não eram seus corpos ou faces, mas eram suas entonações e palavras. Bom, para Sísifo, era o suficiente naquele momento.
Pendendo do barco, caiu para frente, perturbando as ondulações da água. Uma lula gigante e uma baleia negra esperavam-no lá embaixo. Falavam ainda em sua cabeça, agradecendo-o por se juntar a elas e dispersarem sua solidão, e então o abraçaram ternamente. Foi nesse momento que o homem percebeu que o ar que lhe era necessário não existia no mundo aquático, e depois de alguns segundos, sentiu o corpo adormecer e a mente desvanecer. Era hora enfim, de voltar para a mãe e o irmão. Assim, afundou.
Na superfície, enquanto o corpo afundava, o Cruzeiro era atormentado por violentas ondas, sem no entanto sair muito do lugar. Era um navio que ao longe surgira quando Sísifo começou seus devaneios. E foi assim que encontraram o barco a se remexer no mar. Vazio.
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Sísifo, Cruzeiro e o Mar
Short StoryDepois de semanas perdido no mar, Sísifo finalmente encontra um meio de sair daquela situação. O encontro que marca o destino de sua vida acontece no meio do nada.