Milton chegou ao seu limite. Depois de anos sem arranjar emprego, em meio à crise econômica que assola o país, sujeito a bolha imobiliária com seus alugueis impiedosamente irreais diante de um salário mínimo que assim mesmo nem possui. Ali, vivíamos como cães vadios, esfomeados e sardentos.
Milton passou dois dias sem comer, antecedidos por tantos outros comendo mal. A barriga doía uma dor aguda que estrangulava sua garganta de vontade de chorar. Caminhou até o centro porque o dinheiro que tinha era suficiente apenas para um cafezinho e pagar a impressão de ao menos cinco folhas de currículos, que distribuiria em agencias ou qualquer outro lugar com uma oferta. Caminhou com a saliva presa na boca por mais de hora, e quando parecia rebentar de vez, ele engolia um pouco dessa saliva depois de mastiga-la como se estivesse servindo-se de um petisco. Ele mastigava para enganar o cérebro, para enganar a si mesmo.
Este não é um dia especial, é apenas mais um. Mas cada dia vivido nesta tragédia que se tornara sua existência era uma subtração de sua dignidade e de seu orgulho. Milton era menos um homem que um cão sem dono vagando pela decadência da cidade, a cara mais pobre dum lugar tão feio. Horas passaram e então ele voltava de sua demanda no centro, arrastando sua dignidade na sujeira das calçadas mijadas, menos um, menos um. Sua boca já estava seca, nem saliva ele mastigaria mais enquanto chegava a poucos passos de sua casa, mais uma vez sem nada, nem uma promessa, porque nesse estado até uma promessa é uma realização, mas não, nada. Entraria pela porta para mais um dia sem comer. Quantos mais?
Se aproximando de um terreno baldio, onde seus vizinhos despejam detritos criminosamente, um pensamento pulsava em sua mente já delirante de privação. "Se sou um cão, que me vire como tal", repetido como um mantra da derrocada da dignidade. Despia-se de tudo que lhe fazia gente, a fome lhe fez bicho e tal como um saltou para o terreno e se pôs a fuçar sacos pretos, sacolas de supermercado amarradas e sujas. Havia de ter qualquer porcaria podre para se comer. Não precisou muito topou com uma lata de leite moça usada, a qual raspou a sobra com os dedos que então chupava. Topou com um pedaço de um pão com mortadela sujo de pó de café e sabe-se lá mais o que, que diante de seu estado era nada menos que saboroso. Era duro, mastigou com força até o ultimo pedaço. Daquele saco afortunado já não tiraria mais nada, hora de passar para o próximo. Foi então que Milton levantou a cabeça e apontou o focinho para a calçada dando de cara com Amelinha da rua de baixo. Ela dignou-se a cumprimenta-lo com discrição. Ele quis latir, mas preferiu calar-se.
De Sorel
São Paulo, 2017
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dias de Cães Vadios
Short Story"Milton chegou ao seu limite. Depois de anos sem arranjar emprego, em meio à crise econômica que assola o país, sujeito a bolha imobiliária com seus alugueis impiedosamente irreais diante de um salário mínimo que assim mesmo nem possui. Ali, vivíamo...