O Pastor e os Olhos Dourados

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A primeira coisa que ele fazia quando saia de sua cabana toda manhã era observar o céu. O azul claro entre as poucas nuvens brancas sempre lhe concedia uma sensação de calma. E então ele tentava enxergar a mesma sensação nos outros pontos brancos do seu pasto, ali bem abaixo do céu, para que assim o peso do ofício diminuísse.

Não o leve a mal - pelo menos não agora. Pastorear não era um trabalho estressante. Enfadonho, talvez. Porém, todas as noites quando se deitava, o pastor deixava sua mente afundar em pensamentos que o corroíam de dentro para fora, e rezava para que a paz das nuvens lhe acalmasse e lhe desse resiliência para o dia no qual precisaria, seja esse dia o de amanhã ou o próximo. Mas muitas vezes, quando cedia seu corpo a Morfeu, os olhos dourados e perversos assombravam seus sonhos, onde o poder que acreditava que as nuvens possuíam não tem vez.

Enclausurado por escolha própria, poucas vezes se afastar da sua cabana e de suas ovelhas, atravessava a pequena estrada de terra e andava pelas ruas da aldeia para vender a lã que observava crescer tantas vezes. Seus pés iam pesando à medida que os camponeses o encaravam. Para eles era um evento observar a figura de olhos fundos e cabelos desgrenhados, com roupas velhas e postura corcovada. As calçadas enchiam-se de sussurros indiscretos, brotando gradativamente a cada passo que o pobre homem dava. Quando voltava à sua velha cabana, sentia como se pudesse respirar novamente.

Assim vivia este pastor. Sempre esperando por um dia que não sabia se viria, tentando se conformar com isolamento daquele prado verde, que refletia a luz do sol para seus animais e seu consolo. Era difícil ver aquele lugar e sentir tranquilidade, embora fosse sua tarefa diária. Aquilo era um campo de constante tensão. Apenas uma coisa o mantinha naquele pasto, sem poder trocar de nome ou profissão: a certeza de que não estava louco.

Quando o passar dos dias já deixava de ser uma espera e se tornava um mantra, algo surgiu ao longe, exatamente como nas suas antigas memórias. Ao ver a figura quase largou seu cajado tamanho o desafogo. Um torpor foi se espalhando enquanto o ambiente parecia se tornar mais escuro. Ele conseguiu, contudo, tirar os olhos por um momento do fundo do campo e olhar para o céu. Resistiu à paralisia e correu para a aldeia, como já tinha feito há muito tempo.

Todos ficaram surpresos ao ver aquele homem correndo e gritando, pois embora fosse muito ausente era retraído e cansado. Ouviram o seu pedido de socorro, entregue com a voz mais rouca e madura se comparado há anos atrás. Aproximaram-se, continuando a ouvir a convicção dele. Dúvida e incredulidade era o sentimento mútuo entre os aldeões. Mas será possível que aquele homem, outrora um jovem pirracento e brincalhão, pudesse continuar com aquela brincadeira até aquele momento? O pastor sabia o que todos estavam pensando, mas não desistiu. Continuou pedindo ajuda, pedindo uma caça. Aquele dia piedoso era a chance que tinha para que todos mudassem a visão que tinham dele.

Uma pessoa finalmente se colocou a frente e disse em alto e bom som aos outros que "este infeliz não seria desvairado de organizar aquele escarcéu para que no final ganhasse apenas mais decadência." O pastor continuou obstinado e com expectativa esperou a resposta do restante.

Os outros compraram o argumento.

Seguiram o sujeito até o seu pasto. Durante o curto caminho, ele, embora aliviado com o apoio de todos, estava suando e mal notara que o seu beiço tremia. E se o animal não estivesse mais lá? E se fosse tarde demais e todas as suas ovelhas tivessem sido comidas? Ignorou o absurdo de pergunta que tinha feito a si mesmo. Ao invés, questionava mais ainda se ainda acreditariam nas suas palavras, se virariam as costas e se vingassem. O que mais poderia pensar que o fizesse desfiar a imagem clara que tinha visto há alguns minutos?

Agora de frente ao pasto, o homem avistava incrédulo a figura, ainda lá. Por fim, tudo aquilo acabaria. Já estava acabado! O júbilo não contido escapava aos poucos, e risos podiam ser ouvidos do pastor. Virou para os aldeões, emocionado, apontando para o animal.

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