Entre amigos

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Tem coisas que a gente tenta não lembrar. Provavelmente, são as mesmas que não conseguimos esquecer. Até porque nosso cérebro não é exatamente nosso melhor amigo, então não podemos chegar para ele e pedir: você pode esquecer essa memória? É dolorosa! Ele não tá nem aí... A função dele é gravar momentos. E essa memória está tão intrínseca em mim que eu duvido que um dia esqueça. Os olhos de Antônia eram como brasas quentes em meu corpo. Fabrício transpirava medo, talvez ele tivesse medo de que falássemos que sabíamos que ele tinha beijado Miro na quadra há muitos anos atrás... Eu queria que Paulo tirasse os olhos de mim, se os de Antônia me causavam calor, os de Paulo eram uma espécie de lâmina. Me olhava como se quisesse me acusar, mas eu não cedi, e jamais cederia. Lourdes, coitada, arrumou todo aquele encontro de boa vontade, até fez uma placa de madeira talhada com o nome Entre amigos e a data que nos encontramos: 15 de janeiro de 2019.

Me desculpe... Você não está entendendo muita coisa, não é? Me deixe te contar.








Eu não sabia que em um quarto e sala poderia acumular tanta poeira. Passei a vassoura mais de quatro vezes e ainda havia resquício de sujeira debaixo do sofá. Desisti. Estou exausta de ontem ainda. Bati perna no centro inteiro, meu tamanco quebrou e quase roubaram meu celular, mas pelo menos consegui vender meu estoque todo de batom matte.

Sentei no sofá e abri um vinho. Era barato, mas pelo menos é doce. Prosecco não é comigo. É caro e é ruim. Levantei para terminar de arrumar a sala e vi que ainda tinha uma caixa que eu não tinha visto. Tinha tanta coisa que veio na mudança que eu tinha deixado de lado, essa era uma das caixas. Na frente estava escrito: Coisas da adolescência. Abri e logo vi um caderno do ensino médio, passei as páginas e era como lembrar de uma época muito distante. Eu não falava mais com ninguém do ensino médio. Fui jogando fora alguns papéis que, por mais que tivesse valor sentimental, não cabia mais naquele apartamento minúsculo.

Até que vi um porta-retratos, quebrado nas pontas e bastante empoeirado na frente. Passei uma flanela e, automaticamente, arregalei os olhos. Eram eu e meus melhores amigos no último ano do ensino médio. Fabrício na ponta, Paulo do seu lado, Lourdes no meio, eu e Antônia na outra ponta. Éramos do tipo inseparáveis... Aliás, não sei bem como a Lourdes era do nosso grupo, era umas das maiores nerds da sala. Guardei a fotografia em uma das gavetas da sala e finalmente terminei de arrumar o apartamento. Ainda não tinham colocado água quente, então enfrentei o banho gelado e perdi o sono. A cama não era das melhores, mas só de não ser um sofá já era uma grande conquista.

Aquela foto não me saía da cabeça. Eu me lembro bem quando tiramos. Estava todo mundo cheio de sonhos, eu iria ser uma grande jornalista, mas sequer consegui passar no vestibular e logo depois fui expulsa de casa pelo meu padrasto. Fiz inúmeras coisas erradas, mas a pior foi fazer uma tatuagem com a inicial do meu ex-namorado, que inclusive está naquela foto. Hoje, isso me arranca boas risadas, mas só porque consegui cobrir a tatuagem com outra, dessa vez uma frase de Rubem Alves: "Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses". E claro que isso não tem nada a ver comigo, mas é o que dava pra fazer.

Acordei com o sol de meio-dia no rosto. Eu precisava comprar uma cortina urgente. Entrei nos sites de utensílios para casa e enquanto pesquisava o Facebook me manda uma mensagem: Lourdes Maria quer se conectar com você. Franzi o cenho e dei risada. Que coincidência maluca. Aceitei o convite, mas não mandei nenhuma mensagem... Sei lá, vai que ela só quer saber como eu estou, vai ver logo que eu estou bem mal e tudo volta a ser como é. Olhei mais algumas cortinas e consegui uma com o preço mais aceitável e dividirei de quantas vezes eles deixarem ou meu cartão permitir.

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