• demi •

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- Você já considerou dividir seu imóvel com outra pessoa? - Dr. Kalil me pergunta. Franzo minha sobrancelha e paro de estalar meus dedos.

- Quê? - a pergunta é honesta.

- Acho que você devia considerar. Morar nesse casarão... - ele olha em volta e arqueia as sobrancelhas. - ...sozinha. Esse pode ser o motivo de você ainda ter pesadelos.

Suspiro. Não é o motivo, ele sabe que não é.

- Uma companhia pode te fazer bem, você não pode se isolar pra sempre.

- Eu não vou dividir minha casa com um estranho, não sei da onde o senhor...

- Doutor. - me corrige.

- O Doutor tirou essa ideia.

- Não é dividir, ele pode morar no porão. Você disse que lá costumava ser o seu quarto, certo?

Assinto.

- Então, uma pessoa morando no seu porão pode te ajudar bastante e você ainda ganha um dinheiro extra.

- Eu não preciso de mais dinheiro.

- Aposto que não. - ele fala com um quase deboche. - Essa pessoa pode te ajudar com alguns afazeres, como cuidar do quintal, limpar a chaminé, arrumar algo quando quebrar. Lembra quando o seu cano estourou e inundou toda a sua cozinha?

- Sim e eu chamei um encanador e ele consertou. Simples assim.

- E quando você ficou tão aprisionada no seu trabalho que quando chegou em casa não tinha nada pra comer?

- E eu liguei pra pizzaria. - disse seca. - Você está querendo me arranjar um marido, é isso? Ou querendo que eu contrate uma empregada?

Ele ri pelo nariz.

- Não, Demetria...

- Demi. - dessa vez, eu o corrijo.

- Demi. - ele repete, quase posso ver um vislumbre de um sorriso. - Eu só acho que uma ajuda seria benéfica, considerando seu estado e o tanto de tempo que você gasta no trabalho. Você está cada vez mais sozinha.

- Não estou. - respondo olhando para os meus três gatos dormindo no outro sofá. Ele solta o ar.

- Você está. Você só trabalha e fica sozinha nessa casa imensa. Você não sai, não se diverte, não tem amigos.

- O pessoal do trabalho é meu amigo.

- Mas você só conversa com eles em horário de trabalho, certo?

Não respondo.

- Você devia tentar, já está na hora de você voltar a conversar com as pessoas.

- Eu acho que nosso tempo acabou. - digo olhando pro grande relógio antigo. Doutor Kalil olha seu relógio de pulso e assente.

- Você tem razão.

Ele levanta, passa a mão na camisa amassada e ajeita o óculos. Me levanto junto e o acompanho até a porta, ele se despede com um sorriso triste e eu dou o meu sorriso simpático. Fecho a porta e solto o ar que estava preso em meus pulmões.

Doutor Kalil é meu psicólogo a oito anos, mas nos últimos anos nossas conversas têm se tornado mais duras e diretas. Eu percebo que ele se esforça e toda semana aparece com uma ideia pra fazer com que eu "volte a socializar".

Mas eu estou bem. Tenho meus três gatos, trabalho de segunda a sexta o dia todo e aos finais de semana assisto minhas férias e filmes. Não posso pedir mais nada, com vinte e quatro já tenho a vida dos sonhos: minha própria casa e dona de uma empresa.

__

Nem percebo quando meus pés me levam direto ao porão da minha casa, desço a escadinha e entro.

Ele permanece o mesmo de um ano atrás, quando era meu quarto. Uma cama enorme, paredes pretas com detalhes rosas, pôsteres de bandas - que graças a Deus não existem mais - e um imenso espaço livre.

É um bom espaço para morar e continua em perfeito estado. Exatamente como eu deixei antes do acidente.

inquilina | semiOnde histórias criam vida. Descubra agora