A Última Visita

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O crepúsculo sempre foi o melhor momento do dia pra mim, especialmente no inverno, quando começa escurecer mais cedo, mas o verão ainda reinava sobre o fim de tarde e a luz do sol invadia a sala, onde eu lia um livro sentada no sofá. De vez em quando, eu me distraía da leitura e perdia o olhar na vista para as montanhas, pequenos prazeres de se morar em andares mais elevados, como a brisa que invadia o apartamento levantando o aroma de casa limpa.

Quem entrasse ali naquele momento, nem poderia imaginar que aquele ambiente tão limpo e organizado não refletia muito a minha vida, na realidade. No entanto, aquele dia já havia começado atípico, quando acordei com uma estranha disposição para fazer faxina e foi o que eu fiz quase o dia todo. Após a labuta, um banho e depois a recompensa: o merecido descanso.

Meu olhar percorreu o apartamento agora organizado e com tudo no seu devido lugar e percebi o quanto eu gostava dali, apesar de tudo. Era um apartamento antigo e espaçoso, recém-reformado, com móveis planejados em todos os cômodos, janelas grandes voltadas para a frente do prédio, paredes de tons claros e piso escuro de taco bem conservado. Eu tive mesmo muita sorte de ter encontrado aquele lugar por um bom preço, o fato de não ter varanda e duas vagas na garagem, tornaram o aluguel acessível e eu não precisava nem de uma coisa e nem de outra. Me flagrei sorrindo do meu fortúnio e fiquei pensando sobre a sensação de paz e realização que uma casa limpa poderia proporcionar e por que eu não fazia aquilo mais vezes. Eu estava genuinamente feliz naquele momento, com o sol acariciando meu rosto como um abraço caloroso, apesar da fase destrutiva que eu estava vivendo, contudo, era importante reconhecer o meu esforço e os frutos que eu estava colhendo de dias melhores.

Quando tentei retomar a leitura, o interfone tocou. Eu não esperava ninguém e não queria ninguém perturbando meu sossego, deixei tocar até cair e voltei os olhos para o livro. O interfone, insistente e intrusivo, reverberava em minha mente e frustrava minha tentativa de continuar a leitura em paz. Respirei fundo e resolvi atender, apenas para pedir ao porteiro que dissesse à pessoa que eu não estava em casa, mas antes de eu falar qualquer coisa, ele foi mais rápido, anunciando quem era o visitante. Franzi o cenho. Eu não esperava que ela voltasse tão cedo, não éramos exatamente amigas, mas éramos velhas conhecidas. Dei autorização para ela subir e fiquei esperando de frente para a porta, tentando inutilmente desenrolar o fio do interfone. Eu poderia ter recusado recebê-la, mas estava tudo tão impecável que não teria porque ter algum problema, eu podia lidar com aquilo.

Ao ouvir os passos dela se aproximando endireitei minha postura e abri a porta:

— Oi — eu disse ao mesmo tempo que meu sorriso se minguava. Eu não a reconheci. Eu sabia quem era ela e ao mesmo tempo não sabia.

Não houve tempo para pensar melhor sobre isso, sem rodeios, a mulher foi entrando e me medindo de cima a baixo, deixando-me sem jeito. Me apressei em fechar a porta para disfarçar minha inquietude.

— Que vida medíocre essa sua — ela disse, sem mais nem menos.

Senti os olhos dela em minhas costas enquanto eu encarava a madeira da porta pintada de branco. Eu queria rebater aquela afronta, mas as palavras ficaram entaladas em minha garganta. Agora que ela havia entrado, parecia tarde demais impedi-la.

Virei-me encontrando aquele olhar carregado de desprezo, ela não se demorou em mim, logo desviou o olhar para as paredes e meu olhar acompanhou o dela, tentando entender o que havia lhe chamado atenção, mas para o meu total horror, as paredes antes de tom claro, estavam agora imundas com sujeira escorrida e mofo, como se pertencessem a uma casa muito velha e abandonada. O piso de taco que eu havia mandado envernizar não fazia muito tempo, assim que ela olhou ficou apodrecido e quebrado em algumas partes de onde saíam carunchos esgueirando-se pelo chão, fazendo meu estômago revirar.

Para onde ela olhava o apartamento se deteriorava. As cortinas tornaram-se escuras e pesadas, as janelas enferrujadas pareciam que há muito não se abriam. Teias de aranhas acumulavam-se pelos móveis, pelos cantos do chão e do teto que ganhavam manchas escuras de infiltração.

No corredor, em direção aos quartos, tive a sensação sufocante de que o aposento estava se fechando sobre mim e meu coração parecia que ia me esmagar antes das paredes. Eu a seguia pelos cômodos aturdida e impotente, enquanto cada passo dela maculava o meu mundo.

Depois que tudo havia se transformado em um cenário decadente, ela foi embora sem dizer mais nada. Fechei a porta assim que ela saiu e encostei-me na madeira envelhecida, que deixara de ser branca no momento em que recebera o olhar amaldiçoado. Me senti doente, doía até para respirar, o peso do cansaço me derrubou. Eu estava totalmente sozinha na vida e isso nunca tinha sido um problema antes, mas naquele momento passou a ser, não me restava mais nada a perder. Toda a felicidade daquele dia havia ido embora.

A campainha tocou minutos depois de a mulher ter ido embora, assustada, abri a porta sem pensar e dei de cara com ela de novo.

— Esqueci algo aí — ela disse já entrando e indo em direção ao corredor dos quartos.

Fui atrás dela seguindo-a até o banheiro que para minha surpresa estava intacto, o piso com revestimento rústico ainda era novo, o espelho que tomava toda a parede ainda estava inteiro, a pia, o vaso sanitário e a banheira ainda estavam brancos e limpos. O cheiro de desinfetante de lavanda contrastava com o cheiro de mofo que havia tomado o restante do apartamento. Com o choque do ocorrido, eu não me dera conta antes de que não havíamos passado naquele banheiro.

— Você está horrível — ela espantou-se ao me olhar como se eu tivesse acabado de aparecer ali — anda, vem tomar um banho para relaxar.

Com muita naturalidade, ela abriu a torneira da banheira e sentiu a temperatura da água com a mão. Eu me olhei no espelho, meu rosto havia envelhecido uns 10 anos e minha roupa estava surrada como se tivesse envelhecido comigo. Ela veio por trás levantando minha blusa sem pedir licença, olhamo-nos pelo espelho e ela sorriu, melancólica, como se carregasse um segredo doloroso. Levantei os braços sorrindo de volta.

Ela terminou de me despir totalmente e me ajudou a entrar na banheira, a água estava numa temperatura agradável, convidando-me a relaxar.

— Use isso, você se sentirá muito melhor — disse a mulher me entregando lâminas de barbear.

Eu peguei as lâminas da mão dela e fiz cortes nos meus pulsos, enquanto eu sangrava, olhei para cima para ver a mulher novamente e de repente a reconheci, era eu mesma.

— Shhh — ela fez acariciando de leve o meu rosto — feche os olhos agora, vai ficar tudo bem, tá... tudo...bem.

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