O dia almadiçoado

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Estou diante de um momento único, todas as minhas decisões estão acorrentadas no passado, e irei listar os motivos de uma história não muito emocionante, talvez não para quem viveu ela. Mas com seus altos e baixos, eu não era nada mais que um humano, mas precisei ser um muito forte.

Como toda história, essa tem um começo. E não foi algo ruim, descobrir coisas que estavam enterradas há muito tempo se torna um peso, mas um alívio da dúvida.

Eu estava andando no bairro onde moro, um lugar parecido com o inferno. Se é que existe um. Pessoas desprezíveis, fome, miséria. O caos não reinava este lugar, pois a ordem dos cavalheiros estava no comando, o rei fora assassinado por eles. Eu fiquei sabendo disso por acaso, todos acreditam que foi um acidente. Acredito que ninguém tenha me visto no dia que estavam murmurando sobre o plano, me matariam se descobrissem que sei disso.
Mas precisava focar em continuar vivo.  Como sempre, estava faminto. A fome sempre foi minha inimiga, e dessa vez precisava fazer algo ao invés de lamentar fraqueza e agonia.
Em meio a toda aquela pobreza, não me diferia. Preciso roubar algo, prometi à Gabriella que não faria mais isso, mas não tenho escolha. Estamos numa situação crítica, não consigo pensar muito.
Estou na pequena feira, tem tendas por todo lado; peixes, mariscos, ostras. Droga, não tem nada simples de pegar aqui?!
Estava começando a desistir da ideia, mas vi que há uma tenda de maçãs ali na frente, ninguém está interessado nelas e o dono parece estar com muito sono, irei esperar ele dormir para pegar o que conseguir.
Há muitas pessoas aqui, a feira tem bastante gente hoje, estranho, deve ter algo errado.
Ninguém nota minha presença, sou um fantasma faminto. As pessoas são imundas, tornaram essa mísera cidade em algo mórbido.
Ele adormeceu, hora de agir.
Vou pegar algumas maçãs e sair correndo. Mas preciso ter calma, vou ir andando devagar como se fosse um possível comprador. Não que eu tivesse uma boa aparência, um casaco cinzento cheio de poeira e uma calça onde guardo minha adaga, fiz ela com um pedaço de ferro que achei por aí, sei um pouco sobre forjar armas, por incrível que pareça.
Enfim, estou seguindo em direção a barraca, fico parado olhando as maçãs, ninguém deu a mínima.
Vou ter que botar elas no bolso do meu casaco, vamos lá, uma duas. Pronto, cinco maçãs é o suficiente por hoje.
Porra, deixei uma cair, o velho vai perceber.
– Ei, o que está fazendo com minhas maçãs?! Volte aqui, pivete de merda!
– Foi mal tio, mas cê não vai me pegar não, falou!
Corri o mais rápido que pude, tentei o despistar na multidão ali, mas ele continuava a vir atrás de mim. Esbarrei em algumas pessoas, o desespero estava grande, mas não podia soltar as maçãs. Achei um beco sem saída, vou tentar me esconder em algum lugar.
Tem um pano sujo ali, perfeito.
Vou ficar embaixo dele, espero que esse velho de merda não perceba.
– Eu sei que você está aqui seu merdinha. Apareça!
Droga, ele me seguiu até aqui, que merda, não posso respirar muito forte, senão ele me ouve.
– Vamos, eu te dou uma maçã de graça se aparecer, só me devolva as maçãs.
Até parece que vou cair nessa.
Acho que ele não vai me achar aqui, já que começou a chover não dá pra perceber minha respiração.
– Achei você, merdinha.
– Droga, me solta, seu filho da puta!
– Vamos lá, você vai sentir o que é ter algo roubado de você.
Ele falou isso antes de me acertar com um soco no rosto. Enquanto eu estava no chão ele continuou me batendo até eu ficar quase inconsciente. Quem dera eu estivesse pra não ter que me lembrar do que ele fez em seguida.
– ladrãozinho de merda, vai ver agora o que é que bom.
Ele abaixou as calças e tirou as minhas também. Eu me lembro brevemente da dor e repúdio que senti. O ódio e desespero correndo em meu sangue. As gotas de chuva caindo no meu corpo, escondendo as lágrimas que desciam. O tempo parecia devagar ali, enquanto era estuprado por um velho por causa de maçãs roubadas. Eu realmente mereço isso pelas escolhas que fiz?
O sangue escorria e eu não pensava em mais nada além de pura raiva e revolta. Fantasiei fazer várias coisas, agir com algo, eu precisava. Mas não tinha forças pra fazer nada. Acho que não vou ser salvo aqui, ninguém iria perceber um fantasma assim.
Ele não falava nada enquanto o fazia, apenas continuava e não parava. Acho que eu preferiria morrer ali mesmo.
Ao ver o velho ir embora minha vista escurece, acho que vou desmaiar, droga, nem consegui as malditas maçãs. Eu sou uma tragédia, só consegui chorar, como sempre.

Eu estava tendo um sonho, mas ainda não sabia disso.
Estou numa montanha, parece estar de tarde, vim procurar uma pessoa, o ar, é muito denso aqui, está frio. Ouço o barulho das árvores e sinto a atmosfera gelada. Respiro e consigo ver uma névoa saindo da minha boca. Onde estou?
Sigo adiante para uma cabana, bato na porta, ninguém parece atender. Tento entrar, mas está trancada, melhor olhar pela janela.
— Tem alguém aí?! Chamo na esperança de que alguém esteja lá, nem sei porque procuro alguém, mas ainda assim, o faço.
Tem uma mulher sentada em frente a lareira. Vou chama-lá.
— Ei, pode me ouvir? Está muito frio aqui, estou procurando alguém, sabe me dizer onde encontra-lo?
A lareira apaga de repente e uma silhueta aparece na minha frente. Me encarando na janela.
— Não deveria ter vindo aqui, ele vai te achar agora.
Uma voz turva e rouca, mas feminina responde isso.
—  O quê? Quem vai me achar?
Assim que termino a frase tudo escurece, só escuto uma voz chamar meu nome.

– Wallace?!
Essa voz...
Ainda estou acordando, mas logo abro os olhos e começo a ver as coisas, acho que estou em casa, também tô vendo um rosto.
– Gabriella?
– Merda, achei que você não ia acordar. mais.
– Você não vai se livrar assim de mim facilmente, mana.
– Você podia ter morrido, droga. Que caralho você tava fazendo?
– Não importa. Como me achou?
– Eu sei quando você tá fazendo merda, é coisa de gêmeos.
Acho que ela não chegou a tempo de ver o que aconteceu, ainda bem, ela não pode saber disso.
– Bem, não tem com o que se preocupar, eu vou ficar bem logo.
– Você sabe o quão preocupada fico quando cê tá fazendo merda por aí? Você é a única família que me resta, não posso perder você também.

Eu estava coberto por ódio ainda, mas dava pra sentir a preocupação dela naquele momento, e isso doía mais do que eu esperava.
– Sinto muito, eu queria arranjar comida pra gente. Não tava pensando muito bem.
– Você nunca pensa, idiota. Eu consegui uns pães ajudando a senhora Olga na casa dela. Diferente de você, eu não saio por aí pra fazer besteira.
– Mamãe ficaria orgulhosa de você.
— Ela sempre se orgulhou da gente, ainda sinto saudades dela.
– Eu também sinto, mana.

Nossa mãe passou sua última noite conosco nos dando comida, ela estava prestes a morrer, mas preferiu nos dar a comida. A peste por causa dos ratos é uma merda. A gente teve que enterrar ela sozinhos. Duas crianças de 10 anos fazendo isso. Já faz 5 anos que ela morreu.
– Ela sempre teve orgulho da gente, não importa as merdas que você fazia. Enfim,  você precisa comer, aqui, vou pegar o pão pra você. Depois descansa mais, vou dormir, vê se fica aí.
– Assistente pessoal, gostei. Pode deixar, não vou sair.
– Não abusa, ou vai ficar com fome, babaca.
– Tá bem, parei.

A gente cuida um do outro desde que a mamãe se foi. Somos gêmeos, mas ela sempre foi a mais certa, por mais que eu faça bagunça, ela sempre tá aqui pra me ajudar.
Acho que fui destinado a ser assim.
Não que eu tivesse muita escolha, não tive um exemplo paterno. Ele foi assassinado por estar lá fora durante o toque de recolher, ele estava trabalhando naquele dia, teve que ficar até tarde, vez ou outra fazia isso pra conseguir uns trocados a mais. Foi um péssimo dia pra isso. Malditos guardas, não podiam ter simplesmente ter prendido ele? Matam sem se importar, eu odeio tudo nessa cidade, preciso fazer algo pra sair daqui, eu e a Gab não podemos ficar nessa miserável cidade por muito tempo. Vamos morrer assim.

Ao mesmo tempo, não conseguia parar de pensar no sonho que tive há pouco tempo. O que foi aquilo?

Preciso focar em outra coisa, melhor dormir agora.

Entre os confins de meus pensamentos amaldiçoados, alcanço o sono, e assim meu descanso.

O Fantasma do Bruxo EscarlateOnde histórias criam vida. Descubra agora