Paralisia

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Saí de casa em direção ao ponto de ônibus, o sol já estava se pondo, mais um dia acabando, mais uma noite começando, e mais uma vez o ônibus se atrasando. Chegou, entrei, lotado. Indo para a minha aula, estudo a noite, em um campus que fica distante do centro da cidade, e eu moro bem no centro da cidade. Com meus fones no ouvido tentando ouvir música, mochila pesada nas costas, cheiro característico de quem trabalhou o dia inteiro e ainda tem que encarar busão lotado, me sinto privilegiado, só o uso para ir à aula.

No caminho vou pensando ser mais um dia comum em que minha empatia pela sardinha aumenta, preso, apertado em uma lata que se move. Eu, diferente dela, escolhi isso, irônico. Enquanto meus pensamentos vão devaneando, percebo que a música que saia pelos meus fones parou, o onibus parou, tudo parou, até a criança que tava lambendo feliz um picolé, parou com a boca aberta e a língua a centímetro do sorvete.

Eu, também parei, meu fluxo de pensamentos continuo, mas eu tento me mexer e nada, nós nunca sabemos como movemos nosso corpo até precisarmos fazer isso conscientemente. Primeiro tento só mexê-los, dedos, mãos, pés, braços, pernas, cabeça e nada, nada se move, apenas meus olhos. Olho para os outros passageiros do ônibus, alguns, estão como eu, mexendo os olhos e procurando algum sentido naquilo, outros nem isso, completamente imóveis, parecem mortos, será?

Enquanto penso em uma explicação para aquilo a porta do veículo se abre, fica aberta alguns segundos até alguma coisa entrar, e o quê entra só pode ser definida assim, coisa. Não tem movimentos definidos, mal tem forma definida, ao mesmo tempo que parece humanoide, me lembra também as massinhas que brincava quando era pequeno, ela flutua e anda, ao mesmo tempo, ás vezes nítido, as vezes com saltos no espaço parecendo um vídeo mal editado.

Conforme ela avança pelo ônibus lotado, como ela faz isso é outro mistério, sinto algo saindo do meu bolso, e percebo que os celulares e equipamentos eletrônicos de todas as pessoas estão voando para fora do ônibus. Nada posso fazer meu corpo ainda não se mexe.

Percebo também que a criatura se aproxima de algumas pessoas específicas, oh não, ela está se aproximando das pessoas que estão ainda conscientes, fala em seus ouvidos e em seguida elas adormecem, ainda estáticas.

Conforme ela faz isso, vai se aproximando do fim do ônibus, onde estou. Cada vez que se aproxima meu coração acelera, cada pessoa que fecha o olho, meu suor caí, cada segundo que passa minha espinha gela, até o momento que a criatura chega na minha frente. Tento gritar, espernear, fugir, mas nada acontece, estou ali parado, estático e indefeso na frente de algo que não consigo explicar.

Ela vai se aproximando do meu rosto, já defino nitidamente sua face, aboca gosmenta cheia de dentes, o odor acre como se tivesse algo podre ali dentro, ela se aproxima do meu ouvido, meu coração dispara, minha garganta tenta absorver ar mas falha e de repente, tudo se apaga. Some criatura, ônibus, pessoas, e quando abro os olhos estou no meu quarto, deitado na minha cama.

No meu colo o jornal do dia, a manchete principal, um aluno surtou dentro do ônibus, o incendiou e matou todos ali dentro, o jornal diz não saber quem foi, mas acho que não acreditariam na minha história. 

Paralisia e Outros Contos AngustiantesOnde histórias criam vida. Descubra agora