Somos Incríveis

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- E o que você quer? De verdade.- Seu olhar transmitia que realmente queria saber. Ele estava prestando atenção em mim.

- Que me vejam - respondi como se fosse fácil para ele entender.

- Mas, eu tô te vendo - retrucou com uma risada. Sabia que não entenderia.

- Não desse jeito - por mais que eu quisesse sorrir para manter o clima leve, meu corpo já pesava com a realidade. - Quantas vezes você já se preocupou em alguém te desejar? Quantas vezes você já foi cobiçado? Quantas vezes você andou na rua como se fosse mais uma pessoa "normal"? - Frisei fazendo aspas. - Quantas vezes já pensou no que vão pensar de você quando descobrissem que não é como eles? Quantas vezes te resumiram pelo que têm ou não entre as pernas? Quantas vezes já foi rejeitado, ridicularizado, humilhado e machucado, não importa como, pelas pessoas por quem se interessou? Quantas vezes você foi visto, mas como uma aberração ou uma monstruosidade? Quantas vezes te rejeitaram a existência? Quantas vezes já chorou achando que a culpa de todos que vão embora ou do que acontece de ruim na sua vida é sua? Quantas vezes te fizeram desejar a morte? - Tirei um tempo para respirar bebendo um gole da cerveja e tentando evitar das lágrimas caírem dos olhos. - Nossa... isso é horrível! Enfim, Eduardo... Eu quero ser vista pelo que sou, pelo que todos dizem que veem. Não quero ser vista algum dia por alguém, quero ser vista agora. Não tenho tempo para o amanhã, porque talvez eu nem esteja aqui. E nem é porque eu me mataria, mas sim o mundo. O mundo não gosta de pessoas como eu, mas não posso deixar de lutar - seu silêncio dizia muito mais do que qualquer palavra que pudesse tentar usar. Continuei. - Só que chega uma hora que cansa ser a pessoa durona, cansa ensinar, cansa ser "a pessoa que tenta se encaixar"... e olha que nem tento, na real. Mas, porra, quem vai me ver? Quem vai me amar? Me abraçar como um amigo ou um parente não pode? Me beijar com sentimento verdadeiro e não o tesão passageiro de um pervertido que só me vê como um brinquedo? Eu sou uma pessoa, mas não é isso que veem quando olham para mim... Eu só queria que vissem além da pele que visto todo o santo dia.

O silêncio estava sobre nós assim como a noite estrelada feito um manto sutil e frio. Eduardo não estava mais olhando para mim, olhava para a cerveja que pegara de volta compenetrado em pensamentos confusos pelo que seu semblante parecia transmitir. Não era culpa dele, eu o metralhei com muitas coisas. Com uma insatisfação pessoal que me assombra desde a adolescência e que sempre volta cada vez pior.

As estrelas pareciam arder friamente essa noite, como se fossem cristais de gelo luminosos dançando na escuridão. Seria mais fácil estar entre elas, não num sentido de morte, mas... num sentido de ser uma igual. Talvez fosse ser menos cansativo e doloroso. De repente, sinto algo sobre a minha mão e vejo que é a mão de Eduardo. Ele também está olhando as estrelas.

- Sabe... - sua voz estava embargada com uma emoção que tentava suprimir e mesmo na escuridão eu podia perceber que seus olhos tinham um brilho de lágrimas. - Eu posso não saber como é nada disso, porque não sou como você... não sou trans. Sei que a sociedade é uma grande merda e eu mesmo era parte disso. Se não fosse você, Eden, eu duvido que teria mudado, honestamente falando. Eu sei que você deseja amor, prazer do jeito certo e atenção... e coisas além disso também. Não posso dizer quando isso vai acontecer, mas espero que seja logo também. Porque você é uma pessoa incrível e merece o melhor do mundo.

- Você é incrível também, sabia?

O rosto dele estava tão próximo que eu podia ver o trajeto das lágrimas marcado pela sua pele. Enxuguei a bochecha colando minha testa na dele. Nós dois sorrimos.

- Somos incríveis - ele disse.

E me puxou para perto passando o braço pelos meus ombros.

- Somos incríveis - concordei.

Entrelaçamos os dedos assim como entrelaçamos os nossos caminhos desde a primeira vez que nos vimos. Ficamos um bom tempo ali olhando as estrelas em quietude. Só dois amigos aproveitando o baile estelar acima de nós e, por um momento, eu senti tudo aquilo que desejava. Amor, felicidade, paz.

Mas, acima de tudo...

Ele realmente me via.

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