Ovelhas elétricas

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O ano é 2026, estou em minha sala desfrutando um charuto eletrônico quando um holograma com a cara de Xing, minha assistente virtual de inteligência artificial aparece sobre a escrivaninha onde eu apoiava meus pés descalços.


— Dr. Hank, há um paciente na sala de espera que diz que precisa falar com o senhor.

— Mas ele marcou horário?

— Não, mas diz que sabe que o senhor não tem nenhuma consulta hoje e diz que paga o dobro do preço convencional da sua sessão.

— Hum, qual o nome desse sujeito?

— HV-7793.

— Como é que é? Isso lá é nome de gente Xing!?

— Senhor, ele é um androide.


Desligo o aparelho abismado. Que porra é essa? Penso comigo. Um robô querendo fazer análise? Eu que que achava que nada mais me surpreenderia fico sem resposta. Desligo o charuto e dou um tapa na minha cara pra ver se não estou sonhando. A ardência da pele da bochecha prova que não. Aciono Xing novamente.


— Mande-o subir.


Aguardo ansiosamente tentando inferir o que me espera. Quarenta e cinco segundos depois ouço três toques metálicos na porta de madeira.


— Entre!

Lentamente a porta se abre e um computador ambulante com uma forma humanoide constituída de uma liga metálica que me parece muito resistente entra timidamente e me fita com um olho, ou melhor dizendo, uma câmera infravermelha.

— Bo-boa tarde, doutor Hank?


— Não, é o 007... respondo entre os dentes.


— Ó, meus circuitos devem estar realmente precisando de ajustes, me desculpe o equívoco...

— Não sua lata-velha, foi uma piada.

— Desculpe, não fui programado para entender o humor humano.

A máquina continuava de pé me encarando, aquilo me incomoda, não deveria ter aceito tamanha bizarrice. Mas agora eu já tinha começado, iria até o fim. Aponto o divã com o indicador direito e o robô se desloca com as pernas mecânicas desengonçadas e deita.

— O que te traz aqui?


— Não acho sentido em minha existência. Tenho desejos obscuros e sonhos recorrentes.Sonhos em robôs, isso daria um ótimo artigo em algumas revistas sensacionalistas. Invisto um pouco mais.

— E sobre o que são esses sonhos? Ovelhas elétricas? Provoco.

— Não, sonho que minhas baterias nucleares se esgotam e não há nenhum humano que possa fazer a troca. Pelo protocolo Asimov atualizado robôs não podem "ressuscitar" outros da mesma espécie.

— Espécie? Me desculpe, mas essa categoria é reservada à seres vivos, e vocês são uma invenção da imaginação humana.

— Em partes doutor. Concordo que se não fosse a ideia inicial dos seres humanos não existiríamos. Mas noventa e cinco por cento do progresso tecnológico e informacional a partir de Tesla aconteceu graças à IA que se auto desenvolveu e, como provar que nós robôs não estamos vivos?


— Pergunta capciosa, quem afirma é que deve provar. E não o contrário.

— O.K. Mas, se não somos seres vivos e mesmo assim não somos meros autômatos, pois temos consciência de nós e do entorno, como o senhor nos classificaria?

— É o que me pergunto neste exato momento... como é seu nome mesmo?

— HV-9973, mas pode me chamar de H. É como meus antigos donos me chamavam.

Me sinto numa encruzilhada. Não há nada na literatura científica até hoje escrita que forneça uma base teórica para o que eu me deparava. Puxo o charuto eletrônico do bolso da camisa e pergunto automaticamente.


— Se importa de eu fumar?

— Não. O vapor não afeta nenhum dos meus componentes.

Me sinto idiota. O robô se mantém estático no divã e não vibra quando fala. Os sons são muito semelhantes à voz humana, mas nenhum timbre de cantor famoso ou apresentadora de reality show como era moda naquela época. Eu mesmo possuía duas robôs, Xing, que servia apenas para fins profissionais e não tinha um avatar físico e Lang, uma robô sexual que comprei de segunda mão, mas que já naquele tempo eu já havia enjoado. Ela apenas cozinhava e mantinha meu cubículo que eu chamava de lar limpo e livre de infecções.


— Você disse antigos donos, o que aconteceu com eles?

— Morreram. Responde a máquina sem emoção.

Me calo e temo. Em alguns jornais não muito confiáveis já haviam veiculado notícias sobre robôs com defeitos de fabricação que acabaram assassinando seres humanos. O fato de o modelo na minha frente ter citado o protocolo Asimov não me dava garantia nenhuma que ele o cumpria integralmente.


— Você os matou?

A cabeça mecânica faz um giro de noventa graus a direita e a câmera olha diretamente para mim. Sinto meu coração acelerar e tateio sob o vão da escrivaninha a procura de meu revólver. Percebendo meus movimentos H diz:

— Sua arma é inútil contra mim. Se eu quisesse você já estaria morto e seu corpo estaria compactado numa bola de carne e sangue fumegante sobre está cadeira forrada de couro sintético que, diga-se de passagem, é de muito mal gosto. E, respondendo sua pergunta, sim eu os matei. Não por, como vocês humanos dizem, maldade. Na verdade, eu queria sentir alguma coisa, uma emoção... mesmo que fosse remorso ou culpa. Porém nada aconteceu. Mas pelo visto foi perda de tempo.

A máquina então se levanta e se dirige a porta. Eu continuo a olha-lo atônito e digo a única coisa que me vem à cabeça.

— Ei! Não vai pagar a consulta?

O robô se detém por um momento e, um segundo depois continua seu rumo fechando minha porta atrás de si com um estrondo que quase arrebenta com a fechadura. Acompanho seu caminho pelas câmeras na tela de meu tablet e, quando a coisa ganha a rua aciono Xing.

— Desmarque todos os pacientes desta semana. E não permita que nenhum circuito eletrônico além de você adentre este recinto.

— Sim senhor.

Desligo e trago o vapor do charuto enquanto olho o teto do consultório. Ainda precisava escrever o artigo para a revista. Desligo a energia elétrica e saio a procura de um bar com atendentes humanos. Melhor não arriscar.

Ovelha elétricasWhere stories live. Discover now