Alves de Machado

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   As noites boas são as não premiadas com um novo alvorecer.

                                                                                                                                                     Paulo Alves de Machado


Desde pequeno tinha uma dificuldade imensa em me expressar, não sentia nada. Diziam que era meu jeito; o jeito dos homens da nossa família. Desde pequeno também sofro com o sonambulismo e mesmo não conhecendo bem a condição do distúrbio, sinto que é com ela que sou livre, que posso ser eu mesmo. Raiva, é a única coisa que me define. Uma vontade constante e latente por sangue, por sofrimento, disfarçada de empatia.

Sete Rios é uma daquelas cidades tão pequenas que possuem uma única rua principal. Ao final, a praça com a igreja de fundo. Na direita a sorveteria, na esquerda o bar, a venda e o açougue Alves de Machado & Amigos e daqui surgem as outras ruas de paralelepípedo que formam a pacata cidade. Sete Rios parou no tempo, assim como os moradores e tudo que aqui vive: sem internet. Apenas rádio e TV.

As coisas da cidade, especialmente as coisas da vida dos outros chegam de uma ponta a outra da cidade numa velocidade tamanha. Em um punhado de horas todos os cinco mil sétimo-rienses sabem o que chamamos de "fresquinhas".

Alves de Machado & Machado é o melhor açougue de toda Sete Rios e é claro, é o único da cidade inteira. Foi fundado pelo meu pai, seu Ademir Alves de Machado, no final dos anos 80 e desde então a clientela só cresceu e nossas carnes melhoraram a qualidade, a Vigilância Sanitária concordando ou não.

Meu avô, Camilo Alves de Machado foi um grande nome em Sete Rios. Foi um dos fundadores da cidade em meados dos anos de 1940. Dize-se que o Camilão, como o chamam aqui na cidade, um homem bravo de cara fechada, e cheio de raiva nos punhos, enfrentou e matou com as próprias mãos uma onça pintada. Reza a lenda também que Camilão foi um dos poucos que sobreviveu a seca que extinguiu o rio que aqui corria - era tão grande que de uma borda a outra pareciam sete rios, daí o nome. Nunca conheci vovô, nem o rio.

Mamãe morreu quando eu era pequenino. Dona Dina me contou que Cecília era uma das mulheres mais bonitas que conhecera, mas não só de beleza física, era uma mulher dedicada com os outros: ajudavam os mais pobres, doava na igreja, no final do ano dava algumas peças de carne a quem não tinha o que comer. Além do mais, era uma mulher muito elegante. Com o pouco, fazia muito. Contam na cidade que Cecília morreu do que chamam de fereza. Nunca entendi o termo nem o contexto e por mais que peça explicação, as pessoas nunca me contam. Não lembro quase nada de mamãe.

Meu pai sempre me disse que eu era igual Camilão: fúria nas mãos, olhos repletos de raiva. Talvez essa minha raiva fosse de família, talvez não. Minha vó Amélia, uma devota de Deus, sempre fez questão de me levar em todas as missas possíveis, mesmo contra a minha vontade. Ela dizia que a fereza devia ser contida e que o único caminho era o Senhor Jesus Cristo. Nunca entendi o sentido, muito menos essa tal de fereza: se tornou parte do meu vocabulário e de mim sem sequer ter um significado.

Sempre fui uma criança introspectiva e, como já dito, repleto de uma raiva inexplicável e uma apatia profunda pelas coisas. Me lembro de um episódio de quando era jovem, ter brigado seriamente na crisma com Raposo Andrade, um menino que vivia fazendo piadas de mau gosto com minha falecida mãe. Certo dia, saindo da crisma, acertei-lhe um soco tão forte no rosto que o derrubou imediatamente e, logo depois, não tive dúvida nenhuma, montei em cima dele e acertei tantos socos no rosto. O sangue e a dor que saltava da alma de Raposo, era tão satisfatória; não queria que acabasse nunca. Foram precisos três homens para me tirar de cima do menino.

Alves de MachadoWhere stories live. Discover now