Como algum dia esquecerei aquele frio inverno de '73? Minha face sendo fustigada pelo frio cortante; o violento uivo do vento; e especialmente, aquele sorriso de Amélie.
Este relato leitor, nem mesmo eu sei seu objetivo, talvez seja uma história de amor para alguns, talvez uma divagação, ou até uma fútil tentativa de provar correta a afirmação Shakespeariana de que existem mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia, sejam elas frutos da psique humana, superstição ou até uma comprovação da natureza irônica de nosso criador, seja ele quem for.
Já que entramos no assunto de filosofia; Ah como não se deleitar perante a sacra ciência de sofrer pela posse de algo tão grandioso quanto a consciência humana? Que outro ser se instalou de forma tão confortável que, na escassez de dificuldade, decidiu explorar sua própria capacidade de matutar sobre questões tão fora da compreensão? Que outro ser, tão aficcionado no conceito de conflito, buscou divergência não somente com outros da mesma espécie, mas com seu próprio espírito? Interrompo aqui meus devaneios, se chegou até aqui, querido leitor, não é pra ler um velho senil divagando sobre nada senão Amélie.
Quando a conheci, me apaixonei por sua inteligência, minha breve excursão ao mundo da filosofia e psicologia se deu graças ao apaixonante tom com que Amélie discutia tais áreas com minha leiga pessoa.
Me apaixonei então por sua aparência, seus traços finos, sua palidez quase mórbida, o contraste do veludo preto frio, com sua linda pele, áspera, branca, morna ao toque, Amélie não tinha o que se é considerada uma beleza consenso, gosto de descrevê-la como a arquitetura de tantos edifícios góticos europeus; uma beleza antiga, de tirar o fôlego de alguns mas completamente ignorável por outros. Nunca cansei de me perder em seus olhos verdes.
E por último, me apaixonei pelo suave aroma de Lírios que sempre a acompanhava, nas suas mechas, nos seus finos pulsos e no seu sensível pescoço, o aroma intoxicava o recinto, qualquer que fosse, e eu, eu não me cansava de afundar nessa fragrância.
Andávamos de mãos dadas pelo centro da cidade em finais de tarde, lamparinas à óleo iluminando o caminho, a ventania não amenizava, mas a presença dela me possibilitava sentir algo que não frio, a mão de Amélie nunca deixava a minha. Aos sábados pedíamos chocolate quente com canela, nunca conseguíamos terminar.
Amei Amélie por muitos e longos anos. Nosso casamento foi o dia mais feliz de minha vida, tendo ela tocado Nocturne op .9 No. 1 para todos nossos convidados, tudo que ela tocava virava arte. Sonhei até mesmo com a possibilidade de eu mesmo tornar-me algo que nunca fui, para melhor, Amélie domou a literatura, a música e mais para o final da vida até mesmo a culinária, mas para desgosto de ambos, nunca conseguiu me domar.
Seus verdes olhos, de manhã ou de noite nunca me faltaram com afeição, e é por isso que me pesa dizer que, por mais que tenha amado Amélie, deixei de amá-la por tanto mais. Não era sua culpa, não era o seu jeito, da noite pro dia uma desgostosa repulsa formou-se, e de lá pra cá não consegui olhar antes a mulher com quem dividia cama e vida de forma não odiosa. Seu perfume de Lírios que antes era o suficiente para abrir-me um sorriso passou a enojar-me, confesso aqui que lembrava-me então o suave e doce aroma da putrefação. Deixei de sonhar com uma vida à seu lado, e passei a sonhar com morte, naquela época não sabia de quem. Neste mesmo período como que para me contradizer, Amélie abandonou os veludos ébanos, abraçando tons claros, felizes, vivos.
Nunca empreguei em meus modos a violência, por mais que em determinado ponto, senti que ela preferiria-na à irreverente e insípida austeridade com a qual tratava-a. Meus toques passaram de plenos e carinhosos para totalmente ausentes, minha fala ostentava um indiscutível pesar.