Bentinho

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Estudante de Letras, 24 anos. Nunca lera Dom Casmurro, que heresia... Conhecia Capitu de uma novela da Globo, e nunca imaginaria que alguém haveria de batizar a filha com o santo nome CAPITOLINA.

Em duas semanas terminou o livro, olhou pro teto da biblioteca e queria incomodar todo mundo dizendo que o que se falava sobre Bentinho até então estava errado. Era ele quem tinha desvendado o mistério do seu delírio persecutório. Numa espécie de "Quadrilha de Drummond", ele dizia, não eu, porque é kitsch, ele dizia que Bentinho amava Escobar, que amava a Mãe de Bentinho, que amava Capitu, que amava Escobar.

Para os que não tiveram a decência de ler (shame on you!), a história, trocando em miúdos, é narrada por um Bentinho adulto, contando sua infância com sua vizinha, mais ou menos da mesma idade, Capitu, no Rio de Janeiro. Depois de 200 páginas de enrolação, com detalhes picantes do primeiro beijo entre as crianças, quase um Lolita, e até posteriormente suas relações suspeitíssimas com Escobar no seminário, Bentinho decide acelerar alguns anos e dinamitar a saúde familiar de todos que compunham seu círculo social.

Bentinho mata a mãe, mata Escobar, mata um agregado da família, mata Capitu e mata o filho. O primeiro serial killer da literatura brasileira estava desenhado na ficção. A moral da história: Bentinho venerava o corpo de Escobar, e isso ele não consegue esconder no seu depoimento que detalha desde os momentos em que eles tocam longa e carinhosamente suas mãos, até na cena em que Bentinho, na janela, repara e deseja o corpo forte e viril do "amigo". Então toda aquela obliquidade, aquela dissimulação e ciganaria de Capitu na verdade é só um lençol tímido com o qual Bentinho tenta esconder sua atração homossexual e tantas outras perturbações emocionais. Terrível é que o infeliz se viu encurralado por diversos cantos:

A mãe de Bentinho tinha vocação para seu filho ser padre. Quanta violação de liberdade! E aquele discurso polido de gratidão de filho para a mãe era só purgação da culpa de alguém que tinha atrações homossexuais a cento e cinquenta anos atrás. Que barra foi gostar de Escobar.Escobar adorava, suspeita-se, eroticamente a mãe de Bentinho, e isso não passava despercebido – diga-se: pegar a mãe do melhor amigo ainda é um certo tabu.Capitu trepou com Escobar? Talvez. E só basta um "talvez" pra ofender a honra de um não só marido mas de um amante frustrado. De repente você pensa que sua esposa está te traindo com o seu crush. Eu não aguentaria. Entraria em paranoia... E talvez só escrevendo um livro em que eu matasse cada um desses traumas pra superar tanta desilusão.

Mais de um século de publicação do romance e as pessoas ainda teimam em se perguntar: "Capitu traiu Bentinho?". E foi após uma aula de Dom Casmurro que o jovem estudante teve a petulância de explicar privativamente sua teoria ao professor. Depois de uma careta bem torta, oferecida exatamente ao final da quarta palavra, o menino se calou constrangido e acatou a sentença: "Que forçação, você tá tirando isso do sovaco!".

E assim nasceu o portal de desabafos artísticos: Literatura de Sovaco.

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⏰ Last updated: Jan 20, 2020 ⏰

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