ACREDITO QUE FOI no quinto dia de sua estada ali — embora neste detalhe às vezes variasse seu relato — que fez uma descoberta definitiva, que aumentou sua inquietação e o conduziu à mais viva ansiedade. Antes disto já havia sentido que se estava verificando uma mudança dentro de si mesmo e que tinham acontecido certas sutis transformações em seu caráter, modificando-se alguns de seus pequenos hábitos. E ele tinha fingido ignorá-lo. Isto entretanto, não o pôde ignorar por muito tempo; e isso o assustou.
Ao longo de toda sua vida quase nunca se mostrou muito positivo, porém mas bem francamente negativo, acessível e complacente; entretanto, quando a necessidade obrigava a isso, era capaz de atuar com razoável vigor e tomar uma decisão relativamente enérgica. A descoberta que acabava de fazer, e que tão viva angustia lhe tinha produzido, era que esta capacidade tinha diminuído realmente até desaparecer por completo. Era-lhe impossível reagrupar sua mente dispersa.
Porque neste quinto dia se deu conta de que já tinha permanecido bastante tempo na cidade e que, além disso, por razões que só vagamente podia intuir, o mais prudente e seguro era abandoná-la.
E percebeu que não podia deixá-la!
Tudo isto é muito difícil de expressar em palavras, e foi mais, o gesto e a expressão de sua cara o que fez compreender ao doutor Silence o grau de impotência a que Vezin tinha chegado.
Toda aquela vigilância, toda aquela espionagem — disse — tinham-lhe envolto, por assim dizer, em uma densa rede que lhe tinha apanhado e lhe impossibilitava toda fuga; sentia-se como uma mosca enredada em uma enorme teia; estava preso, apressado, e não se podia escapar. Era uma sensação angustiosa. Tinha sido invadida sua vontade por um insidioso entorpecimento que a deixava incapaz da menor decisão. A simples idéia de ação — no sentido de escapar começava a lhe causar terror. Todas suas forças vitais estavam dirigidas agora para as profundidades de si mesmo, lutando por arrastar para a superfície algo que jazia enterrado ali, quase além de seus próprios alcances. Viu-se obrigado a reconhecer a indubitável existência de algo que ele, sem dúvida, havia já esquecido há muito tempo, possivelmente anos ou, mais ainda, possivelmente séculos. Parecia como se estivesse abrindo uma janela nas profundidades de seu ser, janela que ia possivelmente a revelar um mundo completamente distinto e desconhecido, embora em, certo modo, vagamente familiar também.
Ainda além deste mundo, imaginava uma cortina enorme; e, quando esta se abrisse, ofereceria-se a seus olhos um panorama mais amplo desta mesma região; e, por último, seria capaz de começar a compreender a vida secreta daquela esquisita cidade.
—Terá isto alguma relação com sua vigilância? — perguntava-se com o coração encolhido — Será que estão aguardando o momento em que eu me una a eles... ou os rechace definitivamente? Então, em última instância, a decisão depende de mim e não deles?
E foi então quando pela primeira vez lhe apareceu o verdadeiro caráter sinistro da aventura, por isso sentiu uma angústia sufocante. Estava em jogo a estabilidade de sua pequena e vacilante personalidade, e sentiu pavor no fundo de seu coração.
Por que, se não, teria adquirido o costume de caminhar furtivamente, sigilosamente, fazendo o menor ruído possível e olhando constantemente detrás dele? Por que, se não, teria andado sempre quase nas pontas dos pés pelos corredores da estalagem virtualmente deserta, e quando estava na rua, não cessava de procurar deliberadamente um refúgio em que poder-se eventualmente proteger? E por que, de não ter estado assustado, lhe teria parecido tão subitamente judiciosa e desejável a precaução de não sair à rua depois do anoitecer? Por que tudo isso, ora?
E quando John Silence insistiu, com tato, em que desse alguma possível explicação destas coisas, confessou, desculpando-se, que não podia dar nenhuma.