Yoko

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   O acidente estava em todos os jornais e Roger, o motorista de Uber, havia acabado de prestar seu depoimento sobre o ocorrido na delegacia de polícia. Que noite havia sido aquela! Sentado na poltrona, esperando a coragem para entrar no carro e ir para casa chegar, ele ainda conseguia ouvir o som dos ossos da moça sendo massacrados ecoando em sua mente. As imagens de sangue e vísceras espalhados pela pista pareciam estar coladas em sua retina e pareciam ganhar mais força a cada vez que fechava os olhos.

   Eis o que aconteceu: estava chovendo, a pista estava completamente encharcada e enxergar o que estava a sua frente era uma tarefa difícil, mesmo com o limpador de para-brisa ligado. O farol estava fechado e, do outro lado da avenida, em sentido contrário ao dele, Roger viu um caminhão de bombeiro. Naquela hora, ele não havia dado muita importância a esse fato, mas ele mal sabia o enorme peso que aquele caminhão passaria a ter em sua vida poucos segundos mais tarde.

   O farol abriu, Roger começou a acelerar o carro, até que viu uma moto tentando ultrapassar o caminhão de bombeiro. A moto estava vindo rapidamente em sua direção e Roger percebeu que, além de não conseguir fazer a ultrapassagem, ela viria diretamente de encontro a ele. A batida seria inevitável. Ele já até podia sentir a pressão do impacto e ouvir a lataria do carro sendo amassada. Roger reduziu a velocidade numa tentativa de diminuir a força da colisão, mas viu a mulher que guiava a moto hesitar. Parecia que ela não havia percebido Roger até aquele momento.

   Os seguintes acontecimentos duraram poucos segundos, mas para Roger, tudo pareceu ter acontecido em câmera lenta. A moto brecou dura e repentinamente, o guidão virou de forma brusca em direção ao caminhão de bombeiro e a motorista foi arremessada exatamente na direção da roda do caminhão. Em seguida, o terror: sons de ossos sendo amassados e pele sendo estourada que iriam assombrá-lo para sempre.

   Roger lembrou de descer do carro, consciente de que veria uma das piores cenas de sua vida. Depois disso, tudo parecia um borrão entre as gotas pesadas de chuva e os reflexos das luzes nas poças de água que formavam no asfalto. Ele não conseguia se lembrar de ter sido abordado pela polícia e nem de como chegou até a delegacia em que estava, mas conseguia se lembrar perfeitamente das informações sobre a vítima passadas pelo policial.

   A motorista da moto era Yoko Sakamoto*, japonesa de 32 anos que havia chegado a pouco tempo ao Brasil. De acordo com o que fora mencionado pelos policiais, Yoko não possuía nenhum parente no país, pelo contrário, ela havia vindo sozinha justamente com a intenção de fugir de sua família. Tal decisão foi tomada devido à infidelidade da moça com o marido que havia deixado no Japão. Pelo que Roger sabia, tal ato no país era algo imperdoável e, por lá, eles eram bem rigorosos com esse tipo de coisa.

*traduzido de japonês Sakamoto = atravessar pela beira, descida.

   Yoko havia sido forçada a se casar aos 26 anos pois, devido à sua idade avançada para o casamento no Japão (a mulher precisa se casar até os 25 anos pois, passada essa idade, acredita-se que ou a mulher não é capaz de lidar com um homem ou que é uma incorrigível farrista), sua família não queria que a vissem com maus olhos. Obviamente, ela não amava o marido que haviam arranjado para ela e tal fato não apresentou nenhuma melhora mesmo depois de anos de casada.

   Yoko e seu marido estavam sempre trabalhando, o que significava que eram poucos os momentos que os dois partilhavam, momentos que a mulher tentava tornar ainda mais raros possíveis. Yoko aceitava todos os turnos no trabalho e lá ficava até tarde da noite para evitá-lo. Até que um dia ela conheceu alguém que mexeu com seu coração, uma moça que havia vindo de outro país para conhecer o Japão. Elas estavam sempre juntas e, por um breve momento de descuido, foram flagradas pelo irmão de Yoko.

   Após ser descoberta, a notícia sobre seu caso se espalhou e Yoko caiu em desgraça: ela havia sido demitida e sua nova reputação a precedia, fazendo com que não conseguisse trabalho em nenhum outro lugar. Além disso, seu marido havia pedido o divórcio e, por conta de todo o ocorrido, o nome Sakamoto havia perdido toda sua honra e prestígio. Desesperada, ela decidiu fugir e começar uma vida nova no Brasil. Yoko mudou-se para São Paulo e, depois de muito sufoco, conseguiu continuar a sua carreira como enfermeira no hospital São Luiz.

   No dia do acidente, Yoko estava voltando de um turno no qual havia ficado até tarde no hospital: um homem havia acabado de cortar o próprio dedo enquanto participava de um desses famosos programas de televisão sobre culinária. Ela estava estranhamente nostálgica naquele dia, sentindo saudade de casa e se questionando se sua família algum dia a aceitaria novamente. Mas o nome de uma família era algo muito precioso em seu país e não tinha como apagar a enorme e obscura culpa que carregava por ter manchado um nome tão antigo que era o Sakamoto.

   Ela se sentia só na maior parte do tempo, se perguntava se algum dia voltaria a amar e ser amada. Será que deveria deixar o cabelo, que estava na altura dos ombros, crescer para ficar com uma aparência mais feminina? Ou, quem sabe, ganhar um pouco de peso? A falta de curvas de um corpo de 49 quilos não era algo muito atraente, ainda mais em um país aonde as mulheres eram conhecidas por suas muitas curvas. Além disso, como era comum entre as mulheres japonesas, Yoko não era muito alta, apenas 1,52m. Como alguém iria notá-la com aquele tamanho?

   Enquanto a mente dela divagava por esses pensamentos, começou a chover. As gotas de chuva batiam forte e insistentemente contra seu capacete e ela só queria chegar em casa. Seu apartamento ficava do outro lado da cidade e, por isso, o caminho seria bem longo e úmido. Ela ficou um longo tempo desviando de carros e sentindo a sua roupa ficar cada vez mais encharcada. Faltava pouco agora, ela só precisava ultrapassar o caminhão de bombeiro que estava à sua frente e que parecia andar mais devagar do que todos os outros carros na avenida. Ela fez a curva para ultrapassar e... droga! Tinha um carro vindo em sua direção, ela ia bater. Yoko girou o guidão da moto para desviar, a roda brecou e ela sentiu seu corpo ser arremessado pela força do tranco. Sua visão girou, saiu de foco e...

   Roger acordou com um sobressalto. Percebeu que ainda estava na delegacia e havia adormecido na poltrona da sala de espera. Era agora ou nunca, ele precisava ir para casa. Eram 2:30 da manhã e com sorte às 3:30 ele já estaria em casa. Ele reuniu cada gota de coragem que ainda lhe restava e atravessou a garagem da delegacia até seu modesto carro. Sentado atrás do volante, encarando o para-brisa, ele só conseguia lembrar do acidente e imaginar como haviam sido os últimos segundos de Yoko. Roger balançou ligeiramente a cabeça tentando,
em vão, afastar aqueles pensamentos e ligou o carro.

   Ele não prestou atenção alguma no caminho, estava aéreo, pensando em tudo o que havia acabado de acontecer. Estava dirigindo em inércia e, quando percebeu, já estava na porta de sua casa. Ele entrou com o carro na garagem, desceu do carro e abriu a porta de casa. Estava tudo estranhamente silencioso, mesmo para aquele horário - São Paulo nunca para e, por isso, os barulhos da cidade também não - mas, vencido pelo cansaço, Roger acabou deixando essa observação de lado e foi direto para cama.

   Ele se deitou, se ajeitou e curtiu um pouco do silêncio com os olhos fechados. A ausência de som estava agradável aos ouvidos de Roger, mas ele não conseguia ignorar a estranha sensação que estava sentindo desde que atravessou a porta de casa e, por isso, abriu os olhos.
A poucos centímetros dele, havia o rosto de uma mulher. Seus traços eram orientais e, para espanto de Roger, não era possível ver o seu corpo. Depois da cabeça da mulher, havia um longo pescoço que dava voltas em si mesmo e parecia estar ligado a algo que ele imaginava que fosse o corpo da mulher.

   Ele fechou os olhos com força, acreditando que seu fim havia chegado. Seria àquela estranha criatura Yoko vindo vingar-se pelo ocorrido? Ele ficou um bom tempo com os olhos cerrados, esperando pela dor ou, pelo menos, que algo acontecesse. Nada. Depois de alguns segundos, Roger criou coragem e abriu os olhos. O quarto estava exatamente como sempre esteve: com suas roupas usadas durante a semana amontoadas na cadeira, embalagens de comida espalhadas pela mesa e nenhuma estranha criatura a vista. Por um segundo ele pensou que tudo não havia passado de um sonho, até perceber a cortina da janela tremeluzir com a brisa da noite. Ele podia jurar que a havia fechado aquela janela...

YokoWhere stories live. Discover now