83º Capítulo - Clara

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Longos minutos se passaram lentamente nos instantes seguintes. Antes de dizer qualquer coisa, pensava em cada palavra cuidadosamente. Era como pisar em ovos! Uma tortura.

Tinha completa consciência de que qualquer entonação errada poderia resultar em sérios desentendimentos, raiva e mágoas. Ainda mais mágoas...

Mesmo que com cautela, confidenciava-lhe tudo que me houvera acontecido, desde meus dez anos, quando comecei a reagir de forma estranha.

_ Quando entendi o que me aguardava no futuro, sofri um baque tão grande que enegreci a alma. – afirmei, encarando-o. – Vir para a Luz significava me aproximar perigosamente de meu inevitável destino.

Papai ouvia a cada palavra com atenção redobrada, provavelmente tentando evitar uma frase mal-entendida e algumas conclusões precipitadamente desnecessárias.

Expliquei, sem muitos detalhes, que Jake despertou em mim um sentimento novo.

_ Destrutivo? Talvez. – ponderei comigo mesma. – Mas muito bom de sentir e viver, não posso negar. Eu me apaixonei, e isso facilitou minha aceitação quanto ao Caos. O amor da minha vida estava lá, ficaria segura. E realmente fiquei.

Deixei claro o fato de que, no que dependeu de Jake, nada me aconteceu. O mal foi que enganaram a nós dois, e ninguém esperava aquilo de Andrew.

_ Tentar matar o elemento surpresa? Burrice! Mas o líder do Caos insistiu na ideia, por isso fugimos.

Contei-lhe até mesmo sobre minha relação com Dylan, a amizade embebida em paixão não correspondida.

_ Sinto-me culpada por não ter amado este rapaz, mas essas coisas a gente não escolhe. – um suspiro dolorido escapou de meus lábios e eu tentei disfarçar, mas não consegui. Papai encarou-me piedoso e sorriu. – Além disso, Nani disse que o filho se mostrou grato a mim até mesmo ante a morte, apenas pela oportunidade de experimentar o gosto do amor que lhe proporcionei.

Engoli em seco, reunindo os caquinhos do meu coração que havia acabado de espalhar pela varanda bem diante de meu pai.

Baixei os olhos, exausta, e finalizei:

_ Eu só queria ser normal... Não ter no sangue a responsabilidade de acabar com um mal superior ao compreensível, ao que podemos lidar. Amo vocês, mas ser uma luminescente nunca foi fácil, principalmente para mim...

O silêncio abraçou a noite assim que as palavras terminaram de abandonar meus lábios. Incapaz de erguer os olhos, mantive a atenção fixa ao chão e aguardei. Uma hora ele falaria alguma coisa...

10 segundos, 15, 20... 1 minuto, 2...

Respirei fundo.

_ Pai... – murmurei, agora procurando seu rosto em meio a penumbra. – Pai?

Seus ombros estavam curvados sobre o corpo e suas mãos cobriam completamente seu rosto. Pelo balançar de suas costas, a respiração era acelerada e muito provavelmente acompanhada por lágrimas.

Aproximei-me em pânico e puxei seu braço.

_ Pai! – falei mais alto.

Um choro doentio embalava o homem mais forte que já conheci. Tive que ser firme para não acompanha-lo.

_ Pai, pare. Pare de chorar! – implorei.

Com a expressão derrotada, ele me encarou.

_ Eu falhei como guardião.

O mundo parou.

_ O quê? – sussurrei.

_ Eu falhei como guardião. – repetiu.

Engoli em seco. Até hoje nunca havia parado para pensar que a decepção de meu pai poderia se estender além de mim, tocando a própria alma. Ele decepcionou a si mesmo e eu, egoísta, jamais percebi.

_ Não. – foi o que consegui dizer.

_ Como não? – exclamou, erguendo as mãos em direção ao céu em sinal de impotência. – Deixei-a ir ao Caos. Deixei-a adentrar a toca do inimigo por própria conta e risco. Deixei-a praticamente nas mãos da morte!

_ Mas eu não morri! – afirmei, no mesmo tom carregado de convicção. – Eu não morri e agora tudo acabou, tudo está bem.

Incerta, toquei seu ombro e procurei seu olhar. Quando o encontrei, pedi:

_ Por favor, pai, vamos viver o presente e deixar o passado para trás. O destino nos fez perder pessoas importantes para que entendêssemos a delicadeza e fragilidade da vida. Estamos sobre uma corda bamba e podemos cair a qualquer momento. Vamos aproveitar, sim? Ninguém sabe o tempo que nos resta.

Lenta e progressivamente, seu choro abrandou. Quando dei por mim, já estava envolvendo seu pescoço com os braços, embalando-o num abraço maravilhoso e reconfortante, selando a paz entre nós dois.

_ Eu te amo tanto, minha filha. – sussurrou ele por entre os fios de meu cabelo.

_ Eu também te amo, pai. – afirmei, afastando-me. – Você me perdoa?

Seus olhos faiscaram.

_ Só se me perdoar também.

_ Então vamos fazer um acordo? Perdoamos um ao outro, mas, acima de tudo, perdoamos a nós mesmos. Combinado?

Uma lágrima escorreu de seus olhos e um sorriso brilhante invadiu seus lábios.

_ Combinado.

Assenti, também sorrindo, e coloquei-me de pé.

_ Filha? – chamou ele quando eu ia ficando de costas para seguir rumo ao quarto.

_ Sim? – virei-me para olhá-lo.

_ Quando é que cresceu tanto assim? Está madura e... Sábia.

Uma gargalhada escapou-me a garganta.

_ Acho que foram os tapas da vida, pai. Eu tinha que aprender alguma coisa, não é mesmo?

_ Sim. – sua expressão, antes triste e pesada, agora tornava-se leve e até mesmo renovada. Sua alma exalava uma vibração jovial e isso me fez vibrar por dentro. – Boa noite, meu amor.

_ Boa noite, pai.

Feliz, segui ao meu quarto.

Naquela noite, dormi sorrindo e em paz. Mal sabia eu o que me aguardava no dia seguinte.

O Ciclo de Sangue - A Escolha da Herdeira (livro 02)Onde histórias criam vida. Descubra agora